Roger Moore e o pastiche do mito

Roger Moore e o pastiche do mito

O nível de popularidade, depois dos filmes estrelados por Sean Connery (e George Lazenby, vai), de James Bond estava tão alto, que o primeiro com Roger Moore, “Com 007 Viva e Deixe Morrer”, garantiu ninguém menos do que Paul McCartney para compor e executar a música de abertura. Não que o ex-Beatle tenha feito mal negócio. “Live And Let Die” é, até hoje, uma de suas canções mais populares e conhecidas, especialmente fora do quarteto de Liverpool.

Moore é três anos mais velho do que Connery, para começo de conversa. No primeiro filme, ele já estava com mais de 40 anos, e envelhecendo de forma mais notada do que Connery que em “Nunca Mais Outra Vez”, seu último filme, ainda parecia mais jovem do que seu sucessor em “Viva e Deixe Morrer”. Além disso, Moore não era exatamente um atleta, apesar de ter ombros largos e perfil longilíneo. Ele chegou a solicitar um dublê nas cenas em que corre, porque achava que ficava estranho fazendo isso. Tudo isso para dizer que este novo James Bond não teria muito como primar pelo realismo.

E essa nunca parece ter sido a intenção dos produtores. Mesmo que a ideia fosse dar continuidade às aventuras da “era Connery”, o Bond de Moore parecia uma paródia do que havia sido mostrado antes. Especialmente os vilões e tramas, que ficaram bem mais caricatos. E olha que Connery lutou contra um cara que usava um chapéu com aba cortante em um filme e “virou japonês” em outro.

Moore escapa da morte caminhando sobre as costas de jacarés, em “Viva e Deixe Viver”, usa cipós, se balançando como Tarzan em “Octopussy”, além de não perder uma oportunidade de mostrar a bandeira do Reino Unido, seja em um paraquedas, seja estampando um balão. Discrição não é seu forte. Na verdade, este James Bond aqui é o agente secreto menos secreto do mundo. A frase “sua fama o precede” é repetida várias vezes ao longo dos filmes. Fora que todo mundo parece conhecer não apenas Bond, mas seus gostos: não é raro lhe oferecerem o famoso martíni com vodca, batido, não mexido.

Mas se James Bond não era tudo isso, o mesmo não se pode dizer de seus vilões. Ou, ao menos, de dois deles: Christopher Lee, hoje mais conhecido como o Mago Saruman de “O Senhor dos Anéis”, deu vida a Scaramanga, o “Homem da Pistola de Ouro”, enquanto Christopher Walken encarnou o bilionário Max Zorin em “007 – Na Mira dos Assassinos”. Ambos inauguram o que viria a se tornar uma espécie de tendência, especialmente dos filmes mais recentes, estrelados por Daniel Craig: ter melhores atores interpretando os vilões do que o ator que faz Bond.

Os ajudantes de vilão são um espetáculo à parte. Nos primeiros filmes, uma característica bastante explorada é o do ajudante com alguma diferenciação física, que acaba se tornando uma vantagem no corpo a corpo. Desde o de “Viva e Deixe Morrer”, que teve um braço comido por um crocodilo e trocou por uma prótese mortal, até o pequeno Nick Nack, interpretado por Hervé Villechaize (o Tattoo, de “Ilha da Fantasia”), que usava o nanismo para se esconder de Bond. Isso sem esquecer o genial Jaws, interpretado pelo gigante Richard Kiel, que, não bastasse seu tamanho impressionante, tinha uma espécie de dentadura de metal, que usava para mastigar praticamente qualquer coisa. Incluindo aí, um dos cabos do bondinho do Pão de Açúcar. Kiel fez um ajudante de vilão tão popular, em “O Espião que Me Amava”, que acabou não só voltando para o filme seguinte, “Contra o Foguete da Morte”, como ainda ganhou um final feliz.

Com todos esses elementos, que hoje já navegaram do brega para o kitsch, não é surpresa notar que a maior parte das referências visuais de “Austin Powers”, a paródia suprema dos filmes de espionagem clássicos, tenha vindo dos filmes estrelados por Moore. Desde os nomes das bond girls (uma chinesa chamada ‘Chew Me’, que se traduz como ‘Me Mastigue’, é o ápice. E ela está em um filme de Moore, não em “Austin Powers”), até as traquitanas, passando pelo golpe de karatê na nuca para desmaiar alguém.

Nos primeiros filmes estrelados por Moore, o grau de misoginia alcançado é ímpar. Mesmo para um universo tradicionalmente machista como o de James Bond. As mulheres, mesmo quando são agentes duplas ou treinadas pelo próprio serviço secreto britânico (assim como Bond), sempre dão um jeito de estragar tudo ou, por uma trapalhada, acabarem representando uma ameaça tão mortal a Bond quanto os inimigos. Mas a partir de “O Espião que me Amava” e “Contra o Foguete da Morte” (que são, basicamente, o mesmo filme, partilhando da mesma estrutura), as coisas mudam um pouco.

Isso talvez se dê por conta do forte movimento de emancipação feminina que ocorre ao final dos anos 70. E se as mulheres começam a ter liberdade para trabalhar, ganhar o próprio dinheiro e irem sozinhas ao cinema, não faz sentido se verem retratadas como debilóides desastradas e aparvalhadas. A agente russa triplo x (isso mesmo que você leu), de “O Espião que me Amava”, ou a agente americana, a Doutora Goodhead, de “Contra o Foguete da Morte”, estão à mesma altura de Bond, lidando com ele de igual para igual. A era de Moore chega a um ápice, nesse sentido, ao colocar uma mulher, Octopussy, no papel de antagonista (ainda que não seja uma vilã no sentido pleno).

A “era Moore”, iniciada em 1973 e finalizada em 1985, acaba sendo bastante representativa da cultura pop dessas duas décadas. Desde a boca-de-sino, mesmo em ternos bem cortados, até o tipo de aventura, que em geral envolvia a eminência de uma guerra nuclear entre russos e americanos, refletindo o espírito de paranoia da Guerra Fria. No final dos anos 80, com a queda do muro de Berlim, esse espírito deixa de fazer sentido, daí entram as duas aventuras de Timothy Dalton.

Publicado originalmente em 23 de outubro de 2012 no Portal POP.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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