Pierce Brosnan leva Bond ao divã

Pierce Brosnan leva Bond ao divã

Para que serve James Bond em um mundo que não está mais polarizado entre duas superpotências atômicas? Essa é a pergunta-chave para colocar os quatro filmes do 007 protagonizados por Pierce Brosnan, no final da década de 90 e primeiros anos 2000, em perspectiva. E mais: pensar sobre essa pergunta ajuda a entender como esses mesmos quatro longas foram tão importantes para a consolidação da “era Daniel Craig”.

Ainda na primeira metade do primeiro filme, “Goldeneye”, Bond tem uma dura conversa com a nova M, agora interpretada por Judi Dench. Ele a acha fraca e sentimental demais. Ela, e isso é o mais importante, pensa que ele é um dinossauro, uma sobra de um tempo que não existe mais, desnecessário em uma conjuntura mais diplomática e mais aberta, já nas vésperas da entrada do novo milênio. Essa é a principal marca da “era Brosnan”, a discussão da relevância de James Bond. Tanto dentro do próprio universo do filme, quanto em relação ao cinema e, claro, bilheterias.

Por isso que os vilões dos três primeiros filmes são tão simbólicos nessa jornada de autoconhecimento em que mergulhamos junto a Bond. Em “Goldeneye”, logo de cara, ele enfrenta um ex-agente britânico, um ex-00, renegado, encarando de frente o tipo de escolha que ele se recusa a fazer. Afinal, com todo seu conhecimento, treinamento e habilidades, ele poderia tomar facilmente o mundo para si. Mas escolhe não fazer. Todos os dias, em cada missão.

Em “007 – O Amanhã Nunca More” seu inimigo é um barão da mídia (interpretado por Jonathan Pryce, o que gera uma curiosa analogia com seu personagem no distópico “Brazil – O Filme”), que pretende iniciar uma guerra simplesmente para poder noticiá-la em primeira mão. A sensação é que Bond encara de frente todas as notícias que decretaram o fim de sua relevância cinematográfica. Além disso, ele, pela primeira vez, precisa lidar com uma amante de seu passado, tendo que, minimamente, encarar as consequências de sua conhecida influência sobre as mulheres.

E por falar em Bond Girls, uma delas é a grande vilã de “007 – O Mundo Não É o Bastante”, se tornando uma das maiores personagens femininas de toda a série. Rivalizando, talvez, apenas com a dramática (no bom sentido) Vesper Lynd, de “Casino Royale”. Mas o ponto aqui é ver Bond sendo manipulado através do seu próprio charme, que é justamente uma de suas maiores armas.

E é aí que chegamos a “007 – Um Novo Dia Para Morrer”, que, por ser o 20° filme da cinessérie, acabou se tornando uma grande homenagem a toda a franquia, focando, especialmente, na iconografia e nos melhores momentos. A passagem de Bond pela oficina de Q já mostra a pasta cheia de truques de “Moscou Contra 007”, ou o a mochila a jato de “007 – Contra a Chantagem Atômica”. M ainda se encontra com Bond em um escritório escondido do MI6, assim como acontecia nos filmes de Roger Moore, apenas para revogar o status de 00 dele, como aconteceu com Timothy Dalton em “Permissão Para Matar”.

O enredo também é trazido de outros filmes, como o tráfico de diamantes que vão acabar sendo usados para a criação de um satélite que emite um raio mortal, exatamente como em “Os Diamantes São Eternos”. Além disso, o vilão usa uma complicada operação para trocar sua aparência, assim como Blofeld, vejam vocês, no mesmo filme. O longa ainda brinca com a iconografia do espião, ao fetichizar a saída do mar de Jynx, a espiã americana interpertada por Halle Berry, remetendo à de Ursula Andress, de “007 Contra o Satânico Dr. No”. A mesma Jynx ainda teria sua vida ameaçada por um laser em uma sequência similar à do mesmo “Dr. No”, com Connery.

Todos esses detalhes compõem o filme mais exagerado, tanto em relação aos planos mirabolantes, quanto em relação às traquitanas e, mais ainda, em relação às acrobacias de Bond (ele surfa uma onda gigante em uma das cenas de abertura). Mas esse exagero, que parece se contrapor um pouco à sisudez que vinha se desenhando desde os filmes estrelados por Dalton, nada mais é que a homenagem suprema à franquia, ainda que, compreensivelmente, fique um pouco deslocada.

O Bond de Brosnan, além de ser o primeiro desde Connery que parece, ao menos, fazer uns abdominais três vezes por semana, é o que melhor encarna a coisa da classe, no sentido de finesse. Não importa a situação, ele ainda mantém aquele ar de quem não está ligando muito. Mesmo quando confrontado com seu passado, não abre muito espaço para que se pense que está ou não abalado. As lutas também ficam sensivelmente melhor coreografadas, com Bond parecendo ser treinado em combate corpo a corpo, o que é uma melhora bem-vinda.

Tudo iria muito bem para a franquia, não fossem dois fatos. Setembro de 2001, o atentado às Torres Gêmeas, e o lançamento de “A Identidade Bourne”, ao final de 2002. “Um Novo Dia Para Morrer”, lançado já depois dos atentados, em fevereiro de 2002, causa estranheza por parecer deslocado nessa nova conjuntura de medo e paranoia em relação ao terrorismo. Ao mesmo tempo, o Bond de Brosnan atua em uma escala de habilidades e prioridades que, depois de vermos Jason Bourne em ação, parece de uma tolice e levianidade sem igual. É aí que entra em cena Daniel Craig.

Publicado originalmente em 25 de outubro de 2012 no Portal POP.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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