Aquarius

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Há uma cena de O Som ao Redor (2013) em que Francisco (W.J. Solha), o “dono” na rua em que a ação se desenvolve, acorda de madrugada, parte rumo a praia e mergulha no mar. Ali ele é um tubarão, criatura pré-histórica e predadora que mantém toda uma sociedade refém de suas vontades e sede de sangue. Em Aquarius (2016), novo filme do mesmo Kleber Mendonça Filho, há uma sequência que espelha seu trabalho anterior – especialmente se considerarmos a função dos personagens de Irandhir Santos em cada produção (segurança no primeiro e salva-vidas neste segundo). Clara (Sônia Braga) mergulha sozinha no mar e aproveita o que há de melhor em morar onde mora: um antigo, mas charmoso, prédio na orla de Recife.

Se Francisco é uma ameaça, Clara é uma força da natureza. Ela é fluida e, portanto, pode ser contida, como sugere o nome do prédio que também batiza o filme, mas nunca parada. Esta característica da personagem norteia o desenrolar da trama central: sua recusa em deixar o prédio onde viveu nos últimos anos, assim como sua relação com a cidade enquanto espaço a ser ocupado. Clara é tão desenvolta tomando vinho em uma livraria-café quanto caipirinha em um forró ou cerveja no aniversário de sua faxineira.

É a fluidez que torna Clara um ícone de resistência e resiliência, atitude que se transfigura em sua luta para se manter no apartamento onde viveu e criou os filhos contra os avanços de uma empreiteira e o assédio dos ex-vizinhos que sonham com uma ilusória montanha de dinheiro que para ela nada significa. Clara representa um mundo onde há valores maiores do que a possibilidade de comprar mais coisas. Aquarius, o prédio, é símbolo dos muitos significados que não encontram correspondência no dinheiro.

A heroína vivida por Braga é orgulhosa de seu passado porque sente que ali está boa parte da sua identidade. Ela não pode se desfazer do apartamento da mesma forma que não poderia cortar seus longos cabelos negros, símbolo da superação do câncer e manifestação última de sua personalidade ainda sensual e vibrante. Espaços, objetos e pessoas criam relações afetivas, defende Kleber Mendonça Filho, que não podem ficar à mercê da sanha consumista que exige a troca frequente para manter o capital girando.

Quando explica seu apreço pelo vinil, sem demérito às tecnologias digitais, Clara manifesta em seu discurso a sua relação com o mundo. Ainda que sejam essencialmente o mesmo som, uma música digital carece da materialidade tangível que sua contraparte analógica oferece. Há história em cada chiado fruto da fricção entre a agulha e o disco, em cada cheiro, em cada ranhura. É possível se relacionar de forma pessoal com uma música em MP3, claro. Essa é uma evocação central de cada obra de arte, mas isso é mais fácil de perceber quando o suporte é tangível.

Ao mesmo tempo o diretor expressa esta relação através da linguagem cinematográfica, usando a iconografia da cômoda que adorna o apartamento da discórdia. Nas sequências da tia relembrando as noites tórridas de amor testemunhadas pelo móvel e, depois, quando alterna da relação sexual de Clara para o mesmo objeto, se estabelece uma relação poderosa demais para ser ignorada. Aquele já não é mais um amontoado de madeira que serve para guardar outras coisas – do mesmo jeito que o Edifício Aquarius não é um amontoado de concreto e ferro – e sim um símbolo de toda a história de vida de suas duas donas.

O Som ao Redor é um filme igualmente afetivo (gravado, inclusive, na rua em que Kleber Mendonça cresceu no Recife). Mas o olhar ferino diante das relações de classe, da manutenção da dicotomia entre Casa Grande e Senzala que ainda é estrutural no Brasil, não permitia muito carinho. O olhar é panorâmico, entre o de Robert Altman em Nashville (1975) e o de Nelson Pereira dos Santos em Rio 40 Graus (1955), mais preocupado com o diagnóstico, ainda que não necessariamente limitado a ele, do que com as soluções.

Aquarius parte de onde O Som ao Redor parou. A fluidez de Clara não é apenas contraponto para a violência e dominação de Fernando: é uma resposta. Diante da desigualdade, a única possibilidade é se manter humana, devolvendo a frieza das relações motivadas pelo dinheiro com empatia, a capacidade de se colocar no lugar do outro. A postura é também uma proposta de agir social. Empatia e cordialidade no lugar de violência e coerção. Afeto e nostalgia no lugar da aridez do sucateamento. E, claro, quando nada mais der certo, pague na mesma moeda. Especialmente se for de forma não-violenta e catártica.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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