Capitão América: Guerra Civil

Capitão América: Guerra Civil

É bem possível que do ponto de vista narrativo Capitão América: Guerra Civil (Captain America: Civil War, 2016) só faça sentido dentro do contexto do Universo Cinematográfico Marvel. Ou seja, o arco de desenvolvimento de personagens não se resolve dentro do intervalo das duas horas e meia de projeção, mas sim em perspectiva em relação aos demais filmes. Por um lado isso é desimportante, já que as bilheterias dos últimos 12 filmes implica que bem poucas pessoas estarão perdidas na trama; por outro talvez seja o que torne a nova aventura dos heróis da Marvel algo mais. Podemos até mesmo arriscar a palavra transcendental.

O conflito central envolve um acordo entre todos os países filiados à ONU que pretende regulamentar as atividades dos Vingadores. O Tratado de Sokovia – batizado em nome do país fictício destruído em A Era de Ultron (Avengers: Age of Ultron, 2015) – faria com que apenas missões sancionadas pelo órgão pudessem ser conduzidas, o que é a base da desavença que oporá Capitão América (Chris Evans) e Homem de Ferro (Robert Downey Jr.). O primeiro desconfia de toda e qualquer instituição organizada enquanto o segundo não quer mais se ver responsável por mortes indiretas decorrentes de suas ações. O que eram diferenças amigáveis se transformam em conflito bélico quando o Soldado Invernal (Sebastian Stan) é acusado de um atentado, se tornando o pivô da disputa.

O apelo de Capitão América: Guerra Civil está em ver os Vingadores quebrando o pau entre si, o que é recompensador em diversos níveis. A cena do aeroporto, que coloca toda a trupe de hiper-habilidosos e super-poderosos se enfrentando, é, em si, um feito cinematográfico. Dar coerência a todas aquelas sequências com múltiplos eventos acontecendo simultaneamente é um desafio enorme – basta lembrar da confusão que Michael Bay fez em Transformers: A Vingança dos Derrotados (Transformers: Revenge of the Fallen, 2009).

O desafio da coerência narrativa não é secundário. São personagens demais em cena – mais do que qualquer outro filme da Marvel até o momento –, e suas motivações, mesmo dentro do alinhamento binário do filme, precisam ficar claras o tempo todo. Especialmente por todos eles serem heróis. Quais aceitam o controle, quais não e o que isso significa individual e coletivamente? Cada soco, pontapé, laser e míssil representa a manifestação de um voto para cada lado personificado nos dois grandes Vingadores.

Capitão América, como defendi no texto sobre O Soldado Invernal (Captain América: Winter Soldier, 2014), representa o discurso dos EUA de liberdade individual acima de tudo. Ele possui, portanto, uma desconfiança natural em relação às instituições, sejam elas a HIDRA, a SHIELD, qualquer governo ou coleção de governos. Para ele o Tratado de Sokovia na melhor das hipóteses não passa de uma amarra, ou, na pior, de uma transferência de responsabilidade perigosa por colocar poder demais nas mãos de burocratas ou políticos. É a manifestação global e heroica daquele mesmo rapaz franzino que tomava porrada de valentões no Queens do entre-guerras.

Tony Stark, o Homem de Ferro, ao contrário, passou por uma transformação profunda ao longo dos últimos filmes. Sua crise de consciência ao ver as armas de sua companhia sendo usadas por terroristas se desenvolve na paranoia por proteção pós-Batalha de Nova York, que o leva à criação de Ultron e sequente adesão ao Tratado de Sokovia. Seu gênio controlador e totalitário não consegue lidar com as causalidades das ações dos Vingadores. A saída, cômoda do ponto de vista do Capitão, é deixar as decisões e consequências à cargo de um grupo que de alguma forma representaria os interesses mundiais.

Capitão América se torna a encarnação do liberal ideal enquanto Homem de Ferro se torna um democrata, crente na lógica de representatividade. Ambas são posturas que oferecem respostas ao dilema da modernidade sobre como nos organizamos. Ao mesmo tempo lidam com as consequências diretas das ações de grupos ou indivíduos que, mesmo munidos das melhores intenções, deixam para trás um rastro de destruição. É possível fazer as contas em relação a quantos poderiam ou deveriam ter sido mortos caso eles não agissem? Não existe matemática tão simples assim.

Por isso Guerra Civil não chega a oferecer uma resposta direta. A civilização é algo que precisa ser colocada em cheque o tempo todo. Quem toma as decisões e quem é responsabilizado? Quanto de poder alguém deve ter e como ele poderá usar? Quem pode ter poder e quem não? Como a sociedade deve lidar com a diferença? Todas são questões sem respostas simples na medida em que não há verdades absolutas. É preciso sempre discutir. Daí a transcendência deste terceiro Capitão América.

Ao depender de outros tantos filmes para sua compreensão temos um vislumbre da complexidade da questão. A responsabilidade em relação ao poder é algo grande demais para ser resolvido em duas horas e meia. Grande demais até mesmo para uma saga cinematográfica baseada em quadrinhos, mesmo este sendo um meio perfeitamente válido para esta reflexão. As manifestações ideológicas tanto do Capitão América quanto do Homem de Ferro seriam simplistas demais se encerradas neste único filme. Eles são personagens cuja construção atravessa os anos, o que aumenta a complexidade de suas facetas.

Capitão América: Guerra Civil é simplesmente maior do que Capitão América: Guerra Civil. Ou, no limite, precisa ser maior para ser compreendido e apreciado em sua plenitude. Ou há perspectiva, ou o filme é vazio.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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