Daniel Craig e o Bond possível

Daniel Craig e o Bond possível

Depois de quatro filmes discutindo o lugar de James Bond no mundo contemporâneo, chegou a vez de mudar tudo. Afinal, o Bond de Pierce Brosnan não fazia sentido em uma sociedade que tinha visto tanto a queda das Torres Gêmeas (e toda a paranoia ocidental decorrente) quanto a “Trilogia Bourne”, que mudou tudo em relação ao cinema de espionagem. Foram quatro anos entre “007 – Um Novo Dia Para Morrer” e “007 – Cassino Royale”, o tempo necessário para compreender essas mudanças.

Quem assumiu as chaves do Aston Martin, a gravata borboleta e a Walter PK foi Daniel Craig. A escolha foi muito criticada, à época, porque o ator seria, de longe, o mais feio a interpretar Bond. Mas algumas pessoas já anteviam na mudança algumas coisas interessantes. Craig é um ator com mais recursos dramáticos que a maior parte de seus antecessores. Além disso, era um rato de academia, o que implica em verossimilhança nas cenas de perseguição e luta. Ele realmente tinha o físico de alguém que pode derrubar duas ou três pessoas ao mesmo tempo.

Quanto a sua feiura, porém, duas considerações: a primeira é que ele demonstra uma seriedade mais profunda, sem a galhofa dos anteriores ou, pior, rosto de cachorrinho pidão de Timothy Dalton. Ele é um homem com uma missão e quando se permite humor, é para uma eventual conquista ou para (na melhor cena dos dois primeiros filmes) desestabilizar o torturador. A segunda é que Craig está casado com a também atriz Rachel Weisz, o que torna ele mais bonito que uma boa parcela das pessoas que o chamam de feio.

A ideia era recomeçar a franquia mostrando a primeira missão de James Bond. Para isso eles resgataram o primeiro livro escrito por Ian Fleming: “Casino Royale”. A cena de abertura é antológica. Um homem entra de madrugada no escritório e encontra Bond. Ele diz que não apenas saberia se Bond já foi promovido a “00” (logo, com permissão para matar), como em sua ficha ainda não constavam mortes. Bond retruca, com a voz grave, “duas.”

“Casino Royale” apresenta um novo James Bond. Mais bruto e mais brutal, bem mais próximo do que foi idealizado por Fleming nos livros. Seu distanciamento emocional chega a ser chocante. Quando vê o corpo de uma mulher que esteve, horas antes, em seus braços, não esboça nenhuma reação. Novamente: ele é um homem com uma missão, que será cumprida. A despeito de qualquer obstáculo, inclusive sua própria organização, o MI6.

Há, logo no começo de “Casino Royale”, uma tomada curta que é a manifestação visual da personalidade deste Bond. Ao perseguir um fabricante de bombas que conhece parkour, Bond precisa compensar a velocidade e agilidade de alguma forma. Quando, em uma construção, o fabricante pula por um basculante, Bond simplesmente atravessa a parede.

Este Bond tem, assim como os outros, gosto refinado e conhece boas comidas, bons vinhos e champanhe. Mas isso faz mais parte da fantasia de James Bond que lhe é necessária para se misturar em ambientes sofisticados. Prova disso é quando ele está irritado por ter perdido uma rodada importante no jogo de pôquer em “Casino Royale”. Ele pede ao garçom seu drink favorito, martini com vodca. O pobre garçom lhe pergunta se prefere batido ou mexido, ao que ouve a resposta mal criada: “que diabos isso me importa?”

Mesmo sendo um recomeço de tudo, os roteiristas, Neal Purvis e Robert Wade, que vinham desde “O Mundo Não É o Bastante”, se mantiveram, ainda que o texto tenha sido retocado por Paul Haggis, vencedor do Oscar pelo complexo “Crash – No Limite”. Outra manutenção dos tempos de Brosnan é Judi Dench no papel de M, a chefe do serviço secreto britânico, a quem Bond responde diretamente.

O fato de Judi ficar no papel reforça um pouco aquela divertida ideia dos fãs sobre a qual já tinha sido falado antes nestes especiais: de que James Bond é o nome do cargo, não do personagem. Ou seja, qualquer um que assuma o posto de 007 será chamado de James Bond, que seria um correspondente britânico para o nosso João da Silva, um nome extremamente comum. Claro que esta não é a ideia original dos produtores, tanto que mesmo o último Bond, o de Brosnan, “havia sido casado, uma vez”, em referência ao casamento de George Lazenby em “Serviço Secreto de Sua Majestade”, quase 30 anos antes.

Se a morte da esposa dava um mínimo de camadas dramáticas ao Bond anterior, dessa vez vemos a construção do trauma de camarote. Em “Casino Royale” Bond se apaixona por Vesper Lynd, uma agente do governo inglês que o assessora na empreitada. E ela o trai. Ou, dependendo da versão que você preferir, ela esconde parte de seu passado, o que pode custar sua vida. Bond então se divide entre seu compromisso para com a coroa e sua sede de vingança, o que o faz entrar em choque com a própria M, que duvida da legitimidade de suas ações. Esse é o conflito básico da continuação direta de “Casino Royale”, “Quantum of Solace”.

Em ambos os filmes, acompanhamos Bond, aos poucos, entrando em contato com uma rede criminosa internacional. Mas em vez de práticas de crime direto, como usar uma bomba atômica para chantagear um país, a organização (chamada de Quantum) usa crimes para ganhar dinheiro indiretamente. Como a explosão de um protótipo de avião para manipular o mercado de ações, no primeiro, ou o apoio a um ditador para ficar com o monopólio do fornecimento de água em um país da América Latina. O dinheiro roubado já sai perfeitamente limpo.

“Casino Royale” ainda é filmado como um Bond clássico, usando algumas transições mais lentas e tendo calma para desenvolver subtramas. Não é à toa que este acaba sendo o mais longo dos filmes com o personagem, batendo duas horas e 20 minutos. Já “Quantum of Solace” abraça a vertigem videoclíptica dos filmes de Jason Bourne, com a câmera frenética e cortes rápidos. Se vistos em sequência, o segundo parece com um epílogo acelerado e alucinante do primeiro. É até curioso notar que “Quantum of Solace” é o filme mais curto da franquia, mal chegando a uma hora e 45 minutos.

Nos filmes seguintes, dirigidos por Sam Mendes, James Bond volta ao revisionismo que marcou a “Era Brosnan”, mas mirando mais o futuro do que o passado.

Publicado originalmente em 26 de outubro de 2012 no Portal POP.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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