“Jauja”, o faroeste existencial místico argentino

Quando se dá conta de que sua filha fugiu do acampamento com um jovem rapaz, Gunnar Dinesen (Viggo Mortensen) volta para sua tenda. Por um instante, ele considera partir em busca dela de pijamas, apenas com um revólver. Ele para, arruma sua farda, dispõe uma espingarda e um sabre sobre a cama. Só então é que resolve partir, sozinho, já que sua filha é sua responsabilidade. Esta cena, profundamente simbólica, ajuda a entender do que “Jauja”, do argentino Lisandro Alonso, é feito.

Gunnar é um dinamarquês viúvo que está em um deserto na beira do fim do mundo. Quando sua filha Ingeborg (Viilbjørk Malling Agger) foge, acompanhando um outro homem, é como se sua masculinidade lhe fosse arrancada. Daí a importância de se paramentar com a maior quantidade de símbolos fálicos possíveis: a farda, a espingarda e o sabre. Ainda que artificiais, são esses aparatos que lhe darão apoio em sua jornada dentro do deserto.

Todo o filme é travado sobre essa tensão simbólica entre o masculino e o feminino, que se resume já na primeira imagem, de pai e filha virados para direções opostas. Ela lhe pede um cachorro, ele lhe diz que talvez, quando chegarem em seu destino (alegoria que só fará sentido ao final do filme). Daí para frente, todos os personagens serão arquétipos definidos por sua sexualidade. Como o soldado que aparece se masturbando pouco antes de pedir para Gunnar a companhia de Ingeborg em um vindouro baile. Ou o grande capitão, cujo rumor é de que está vestido de mulher enquanto segue capturado.

“Jauja”, no fundo, é uma curiosa mistura entre dois faroestes: “Rastros de Ódio”, de 1956, clássico de John Ford em que o caubói vivido por John Wayne parte em busca de uma sobrinha sequestrada por índios, com “El Topo”, de 1970, filme existencial místico escrito, dirigido e estrelado por Alejandro Jodorowski. A busca do primeiro, tema recorrente nas narrativas, mistura-se ao tom onírico do segundo, resultando em um primo torto do “Dom Quixote” de Cervantes, com Gunnar iludido pela sua própria busca.

Mas como é “El Topo” que dá o tom, o ritmo é lento, são poucas as falas e há um uso quase excessivo de tempos mortos, que são aqueles momentos em que a câmera está apontando para o que parece ser nada. A ideia aqui é criar no espectador o mesmo tipo de vazio na alma que está atormentando Gunnar, que segue caminhando por aquele deserto sem nunca chegar a lugar algum.

Alonso expande o clima de opressão com o formato de tela, quadrado de cantos arredondados, fazendo uma contraposição aos grandes planos abertos dos faroestes clássicos da era da tela retangular. Essa opção estética, aliada ao cuidadoso trabalho de sonoplastia, serve para aprisionar Gunnar em sua missão delirante. O resultado é impressionante, já que consegue criar um efeito claustrofóbico mesmo com as paisagens do deserto do Atacama servindo de cenário para o filme.

O Jauja do título do filme, como o letreiro de abertura explica, é um lugar místico para onde muitos foram, mas ninguém retornou. Não fica claro, mas a caravana parece estar seguindo para lá. Ou, talvez, seja para lá que Ingeborg esteja indo, sozinha ou sequestrada por índios. Gunnar apenas sabe que precisa seguir em frente para salvar sua garotinha, assombrando os pampas com seus gritos assustadores de “Inge, Inge, Inge”. Como, de outra forma, poderia se considerar um homem?

Publicado originalmente no Portal POP.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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