Julieta

Julieta

Há um filme em algum lugar de Julieta (2016), mas não nas imagens que Pedro Almodóvar usa para contar a história da personagem-título. Assim como para a própria Julieta (Adriana Ugarte e Emma Suárez), que passa boa parte da vida em estado de torpor, recuperando-se dos traumas que passou, à obra falta vida. Mesmo as cores vibrantes, marca visual do diretor espanhol, só aparecem aqui e ali, mais como assinatura estilística do que como reflexo da explosão de sentidos das personagens. É indício de que há uma intencionalidade na contenção estético-narrativa, ainda que ser proposital não seja critério de redenção.

Julieta é baseado em três contos de Alice Munro que Almodóvar amarrou em uma grande narrativa. Julieta, a personagem, conduz a trama ao narrar suas memórias envolvendo um tórrido encontro romântico com Xoan (Daniel Grao) que a leva à uma vida idílica e bucólica no litoral espanhol e daí para Madrid, primeiro com a filha, Antía (Priscilla Delgado e Blanca Parés), e depois sozinha. Há também uma consonância temática, com a implicação de que as pessoas não conseguem evitar ser o que são. Julieta recrimina no pai (Joaquín Notario) a mesma atitude que tolera em Xoan, reagindo de forma bem parecida com que Antía irá agir em um futuro próximo.

Ao mesmo tempo Almodóvar se permite alguma referencialidade, ainda que possivelmente herdada do material original de Munro. O encontro do casal no trem tem se assemelha com Pacto Sinistro, de Patrícia Highsmith e transformado em filme por Alfred Hitchcock. Do mestre Julieta empresta também a governanta maldosa de Rebecca, A Mulher Inesquecível (Rebecca, 1940) na personagem de Rossy de Palma (atriz-fetiche do diretor).A relação do pai com sua mãe (Pilar Castro) guarda semelhanças com Jane Eyre, de Charlotte Brontë. O nome de Julieta remete à tragédia shakesperiana e sua profissão à mitologia, já que a personagem é professora de filologia, especializada em mitos gregos.

Nenhuma dessas referências chega a se justificar no filme, exceto a última. Julieta, logo depois de conhecer seu futuro marido, dá uma aula sobre Ulisses de Homero. O herói grego, segundo a personagem, abre mão da beleza mundana e da possibilidade de se tornar imortal preferindo a aventura dos mares. Xoan, pescador, toma uma atitude parecida em dado momento, preferindo o mar à família – forma como podemos alcançar a imortalidade – ou ao prazer carnal.

Há também no filme um comentário sobre a onda conservadora que vem assolando o Ocidente, que encontra vazão na forma com que Antía lida com a mãe e a melhor amiga, Bea (Michelle Jenner e Sara Jiménez). O fundamentalismo religioso aparece como uma espécie de falso messias: uma resposta fácil e, em diversos sentidos, cômoda para angústias da vida real, manifestadas na jovem em forma de complexo de Elektra e homossexualidade latente. Não muito diferente da própria Julieta, que encontra resposta para sua depressão na negação e abstração, o que gera uma ressaca existencial.

Mas nenhuma dessas questões encontra uma recompensa narrativa minimamente satisfatória. Julieta é tão anestesiado quanto Julieta, o que se torna particularmente penoso quando comparado com os outros filmes do diretor. O amor não é explorado como em Fale Com Ela (Habla Con Ella, 2002); as relações maternas e seu impacto sócio-psicológico não são tão bem trabalhadas como em Volver (2006) ou Tudo Sobre Minha Mãe (Todo Sobre Mi Madre, 1999); a crítica religiosa não é tão contundente como Má Educação (La Mala Educación, 2004). Isso para não falar no humor e no sexo, praticamente inexistentes não fossem uma ou duas cenas.

O que resta é uma reflexão sobre como a depressão é debilitante e afeta as pessoas próximas. É um tema novo para Almodóvar, que parece não saber ainda como lidar. Sua câmera, até então calorosa e sensual, não sabe como tratar o assunto, afastando-se dele como o enfermo que nega o diagnóstico. As imagens perdem profundidade e cor e criam distância entre o espectador e a história ao invés de gerar empatia para com o drama de Julieta e sua família. Não sendo possível se aproximar dela, suas atitudes em relação aos outros personagens se tornam injustificáveis e, portanto, desprezíveis.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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