Kumiko, a Caçadora de Tesouros

Kumiko, a Caçadora de Tesouros

A primeira coisa que vemos em Kumiko, a Caçadora de Tesouros (Kumiko, the Treasure Hunter, 2014) é uma imagem da abertura de Fargo (1996). As palavras do letreiro — brancas no fundo preto, distorcidas e fantasmagóricas pelo VHS — dizem que o filme é baseado em fatos reais. Informação suficiente para que Kumiko (Rinko Kikuchi) se convença de que em algum lugar próximo a Fargo, a cidade de Minnesota onde a trama do clássico dos irmãos Coen se passa, está a maleta de dinheiro enterrada na neve por Carl Showalter, o personagem de Steve Buscemi no fim da história.

A fé de Kumiko na existência da maleta é o coração do filme. Não é apenas o que move a trama, mas também o centro de uma bela discussão sobre o embate entre realidade e ficção. A personagem de Kikuchi resolve acreditar (e todo ato de credulidade parte de uma resolução) no letreiro que abre Fargo. Que motivos ela teria para não crer? O filme diz que tudo o que está ali é a mais pura verdade: há um tesouro a ser desenterrado da neve em uma estrada perdida no meio de Minnesota e cabe a ela, Kumiko, e somente a ela, encontrar.

Os irmãos David e Nathan Zellner, ambos roteiristas e com o primeiro assumindo também a cadeira do diretor, resgatam um debate que está no centro de como percebemos o próprio cinema desde a mítica exibição feita pelos irmãos Lumière (reza a lenda que as pessoas fugiram correndo ao ver o trem projetado na parede se aproximar). Os filmes, por parecerem com uma fatia da realidade objetiva, são confundidos com ela. Kumiko viu Carl colocar a mala de dinheiro na neve; não havia motivo para duvidar.

Em tempo: se a relação de Kumiko com Fargo parece bizarra, com ela acreditando que o que vê é verdade simplesmente porque o filme disse ser verdade, tente se lembrar da última vez que você questionou uma reportagem que viu na TV. Ou quando alegou a indiscutibilidade de uma questão por ela ter sido tema de uma matéria. Pois é.

O confronto entre realidade e fantasia (ou o discurso da realidade e discurso da fantasia) se aprofunda com a escolha de ambientar a primeira metade do filme no Japão e colocar uma nativa como protagonista. É notório o relato de que os japoneses sentiam tontura ao ver pela primeira vez os quadros renascentistas que usavam a matemática para criar a perspectiva ilusória, emulando nossa visão em três dimensões. Kumiko encarna essa relação com a arte representativa e a visão inocente de quem não diferencia o jogo de luz e sombra etéreo do cinema com a própria vida.

Quando Kumiko chega nos EUA, na segunda metade do filme, o debate sobre realidade e ficção fica lado a lado com o embate cultural. As figuras que a personagem encontra começam a fabular sobre a sua origem, criando histórias em torno dela. O fato de a garota não falar inglês permite que esses estranhos projetem nela seus próprios anseios e preconceitos. Vale para a dona do motel, para o policial, para a senhorinha que a acolhe. O Japão para um americano médio — cujas paisagens mais exóticas já vistas são as da pantanosa Flórida e seus aposentados, a Disney e Miami — é tão misterioso quanto a Lua.

Mas o cinema é escape, postulam os irmãos Zellner. Por isso Kumiko, a Caçadora de Tesouros abre com um forte tom de fábula, tendo nossa heroína caminhando por uma praia idílica até encontrar seu mapa dos tesouros ou na relação com seu coelho de estimação, como a Alice de Lewis Carroll. Este tom é retomado depois em sua peregrinação pelos EUA com seu casaco escarlate. A aproximação com a Chapeuzinho Vermelho fica ainda menos sutil quando ela, perdida no meio da floresta, é atacada por um lobo.

Como em toda fábula há, afinal, uma lição a ser aprendida: encontrar a mala de dinheiro seria uma espécie de caminho mais fácil, se nos apegarmos à comparação com Chapeuzinho Vermelho. Mas a realidade do cotidiano de Kumiko é o caminho certo? O assédio do chefe, o descaso das colegas e a insistência da mãe para que ela se case são mais aceitáveis do que a promessa de escapar disso tudo em nome do sonho de desenterrar uma maleta de dinheiro? A resposta da garota pode parecer louca, mas ao menos não é conformista.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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