O Clã

O Clã

Arquímedes Puccio (Guillermo Francella) é um pai atencioso, preocupado com o dia a dia dos três filhos homens e as duas filhas mulheres. Acompanha a lição de casa da mais nova com atenção e se preocupa com as decisões tomadas pelos outros. Massageia os ombros da esposa enquanto ela prepara o jantar, demonstrando que também é um marido zeloso. Ele é o velhinho que você sempre vê varrendo a esquina de sua loja, com os cabelos impecavelmente brancos e um jeito meio mau humorado. Arquímedes Puccio, figura central em O Clã (El Clan), é, também, o mal encarnado.

O horror em O Clã vem menos dos terríveis atos cometidos por Arquímedes do que da forma como o diretor e roteirista Pablo Trapero trabalha para integrar suas ações criminosas ao dia a dia da família Puccio. Ver o patriarca terminar a massagem nos ombros da esposa para pegar um prato de comida e oferecê-lo a um jovem que é mantido preso em um dos quartos casa ou corrigir a lição de casa da filha com os gemidos de um sequestrado como som de fundo são parte dessa experiência. O cotidiano sempre dá um jeito de atravessar a barbárie.

Mais do que um relato sobre um resquício de uma das brutais ditaduras latino-americanas, O Clã se torna uma metáfora para a própria lógica ditatorial. Arquímedes coopta os filhos e mantém a própria família refém de seus atos criminosos; eles, por sua vez, justificam para si mesmos que é por um bem maior e que o risco vale a pena pela ilusão da união familiar e do conforto. Em um regime de exceção o povo abre mão de suas liberdades individuais em nome de uma falsa sensação de segurança.

Na superfície, O Clã é um conto sobre como seguem operando da mesma forma as estruturas que foram solidificadas durante os anos de chumbo. Mas Trapero usa a família Puccio como um micro-cosmos da lógica ditatorial. A metáfora se aprofunda com a informação — sempre demonstrada, nunca entregue — de que Arquímedes trabalhou para a ditadura argentina quando ela estava em plena operação. Eles “hospedavam” pessoas a pedido do governo e ganhavam para isso. Com a redemocratização, perderam sua fonte pagadora, mas logo descobrem que sequestrar gente rica é ainda mais rentável.

Arquímedes é um líder terrível, que controla os seus por imposição, algo ressaltado pelo trabalho impecável de Francella. O ator escolhe, por exemplo, não piscar na maior parte de suas cenas, mantendo um duro e terrível olhar para aplicar sua dominação. A lógica da visibilidade, afinal, é muito importante para qualquer regime ditatorial, como bem demonstrou George Orwell. No sistema fechado da família Puccio, Arquímedes é o Grande Irmão que a tudo vê e com esse mesmo olhar sufoca qualquer revolta.

A escolha da palavra “sufoca” no parágrafo anterior não é casual. Alejandro (Peter Lanzani), filho mais velho cujos contatos sociais são aproveitados pelo pai, aparece mais de uma vez sufocado, inclusive pelo próprio Arquímedes, em uma grande cena. O tema é recorrente (seu treinador de rugby lhe pede para respirar melhor; ele aparece testando um equipamento de mergulho) pelo, de novo, valor metafórico. Alex, como é chamado por sua família, representa a geração que não tolera a ditadura, mas não tem ideia de como fugir dela.

A história da família Puccio é ao final um alerta duplo. O da superfície, ligado diretamente ao que o filme diz, envolve o perigo do alívio com a redemocratização. As estruturas de poder criadas por um regime de exceção seguem como parte integrante da sociedade por um bom tempo, mesmo depois de um processo de redemocratização. O Clã se passa, afinal, sete anos depois do final da ditadura militar portenha, no começo dos anos 80. Mas logo a América Latina não terá mais uma geração de nascidos logo após a ditadura, que precisa lidar com comissões da verdade e escolher se varre para debaixo do tapete essa história ou se escancara para o mundo o horror. Uma geração que mesmo não tendo vivido sob a mão de ferro ainda é diretamente influenciada por ela.

É quando o segundo alerta se torna necessário: é simples tolerar a desumanização se isso implicar na manutenção de uma sensação de segurança e conforto.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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