O clima de paranoia de “Corrente do Mal”

“Corrente do Mal” é, em primeiro lugar, uma metáfora para a Aids. Ou, a rigor, para qualquer outra doença sexualmente transmissível. Mas, o fato de a maldição ser contornável, sem solução objetiva, reforça a relação direta com o vírus HIV. Há um pano de fundo moralizante, claro. Nesse sentido, pregando menos o celibato e mais que, talvez, seja uma boa ideia conhecer melhor a pessoa com quem se divide a intimidade. Mas o ponto é como David Robert Mitchell, diretor e roteirista, usa essa premissa – de uma maldição que se transmite através de uma relação sexual – para criar uma atmosfera genuinamente aterrorizante e opressiva.

As escolhas estéticas de Mitchell em seu segundo longa são o que conferem ao filme sua aura de neoclássico cult imediato. Começando pela composição de um subúrbio americano, aquela área residencial, levemente decadente. O que leva a uma vida decadente. As casas são sujas, com gramas mal aparadas, ocupadas por famílias desfeitas, com adultos que não parecem se importar muito com a vida dos jovens que, em parte por isso, gastam seu tempo com álcool e sexo.

Situada a ambientação, Mitchell entende que a questão mais importante é o ritmo. Ele não busca reinventar o cânone do horror e, por isso, segue o manual à risca. Acompanhamos uma primeira vítima para só depois conhecermos Jay (Maika Monroe), a adolescente irritantemente bonita, segundo os próprios personagens, que se torna o alvo da maldição. Um terço do filme já se passou até que ela descobre o que aconteceu e quais são as suas possibilidades dali para frente. Foi tempo suficiente para que pudéssemos conhecer e nos apegar a ela, fazendo do horror mais palpável.

Mitchell nem se dá ao trabalho de dar um nome para a maldição. Não há um adulto místico ou pesquisa na internet que explique o que está acontecendo com Jay. Só ela pode ver essa figura que se aproxima lentamente, aparecendo em diversas formas ao longo do filme. O que aumenta a sensação do medo do desconhecido, de paranoia, ampliando a relação com os primeiros anos da Aids. Logo fica claro que ela só tem duas alternativas: passar a vida se escondendo ou passar a maldição para frente (correndo o risco de que a pessoa seja morta pela criatura, fazendo com que ela seja novamente o alvo; e, de novo, a paranoia).

É um filme enxuto, o que quer dizer que ele evita entrar no dilema moral do que significa passar a maldição adiante. A mulher dona de si que se entrega ao namorado se torna uma garotinha indefesa e assustada diante do desconhecido. A forma como Mitchell traduz essa sensação da personagem para o público é igualmente econômica. Nunca sabemos qual forma a criatura irá adotar, por isso, o clima opressivo se constrói nos closes, que não permitem que observemos o que está fora do quadro, com a esperteza de haver, quase sempre, algum figurante andando no ritmo lento da maldição, quando o enquadramento é mais aberto. Assim como Jay, desconfiamos de tudo e de todos ao redor.

Se há um porém, sua raiz está justamente em um dos trunfos, que é a falta de definições claras para a maldição. O mesmo medo do desconhecido que é explorado por Mitchell por não termos ideia de como a criatura irá atacar, pode ser interpretado – não sem um pouco de má vontade – como desleixo. Afinal, ela é superforte, mas tem uma certa dificuldade de atravessar portas, menos quando isso é conveniente para o roteiro. Esse tipo de descuido atrapalha, porque nos tira do mergulho sensorial que um filme como “Corrente do Mal” exige para funcionar. Aí, depende da capacidade cognitiva de ignorar essas falhas para sustentar um nível de paranoia em ressonância com o dos personagens.

Publicado originalmente no Portal POP.

Sobre o autor Veja todos os posts

Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *