O Regresso

O Regresso

A colisão entre o real e a fábula fazem de O Regresso (The Revenant, 2015) um filme mais norte-americano do que a princípio indica sua pretensão de recontar a história de Hugh Glass, um mito formador do imaginário estadunidense. As belas imagens, o urso de computação gráfica e a própria história do pioneiro são tão surreais que ㅡ cada uma a seu modo ㅡ criam um tom onírico. Já as histórias da nevasca, tão severa que impediu as filmagens de seguirem normalmente, e o comprometimento do vegetariano DiCaprio comendo um fígado de bisão, usando uma pele de urso e aprendendo duas línguas nativo-americanas, por outro lado, abraçam o discurso realista.

Por mais que o “inspirado em fatos reais” do começo do filme entregue, a história de Glass (Leonardo DiCaprio) é surreal. Tanto quanto a dos EUA. Atacado por um enorme urso pardo enquanto foge de um ataque de nativos hostis, ele é abandonado por seus homens à beira da morte, não antes de terem matado seu filho, o mestiço Hawke (Forrest Goodluck), diante de seus olhos. Estar à beira da morte, todavia, não é morto o suficiente: ele consegue não apenas sobreviver, mas também se recuperar no meio do caminho, jurando vingança para com aqueles que lhe fizeram mal por pura ganância. Não há nada mais americano do que uma boa e velha história de vingança, não custa lembrar.

É neste ponto que, mesmo buscando retratar o passado, O Regresso se torna um filme sobre os tempos atuais. Glass é pego no meio de uma espiral de ódio. Seus companheiros desconfiam dele por não conseguirem diferenciar seu filho, mestiço Pawnee, dos Arikara, mais agressivos pelo sequestro de sua princesa. John Fitzgerald (Tom Hardy), o vilão do filme, ostenta, ele próprio, as marcas da violência que sofreu nas mãos de uma tribo no passado. O personagem de DiCaprio tem a oportunidade de quebrar este ciclo de violência, mas é justo que ele o faça? Afinal é a vingança que o mantém de pé e seguindo adiante.

O ciclo de ódio como mito fundamental da sociedade estadunidense é parte de uma visão que só é possível pelo fato do diretor Alejandro González Iñarritu ser um mexicano de origem, lhe permitindo o olhar panorâmico, externo ao objeto de análise (note que Quentin Tarantino, sobre o mesmo tema, assume o ponto de vista do centro para a borda). É o olhar estrangeiro que ajuda a retratar os nativos americanos com um pouco mais de respeito, ainda que inseridos na mesma espiral de ódio dos brancos invasores. Glass não é uma espécie de super-índio, como o personagem de Kevin Costner em Dança com Lobos (Dances with Wolves, 1990). Ele é um branco que um dia buscou diálogo com as culturas que estavam lá antes da invasão, atitude que não foi tolerada por nenhum dos lados.

Iñarritu é um diretor que está buscando se firmar como um autor – vide Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) (Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance), 2014), seu trabalho anterior. Pela mão do diretor de fotografia (de ambos os filmes) Emmanuel Lubezki os planos-sequências da farsa teatral ecoam em O Regresso. Naquele, todavia, temos um falso-plano-sequência que simboliza todo o discurso de legitimidade/falsidade que permeiam o filme. Neste, cada longa tomada sem cortes é uma tomada de fôlego que só nos permite respirar quando chega o alívio da próxima imagem. O corte é a morte da cena, relação belamente traduzida em imagens no momento em que Fitzgerald pede para Glass piscar uma vez se estiver interessado em morrer e aliviar seu fardo.

Glass desce ao inferno de gelo e retorna mais morto do que vivo. Miticamente ressuscitado três vezes, em sequências filmadas como dignas de devoção religiosa ㅡ se arrastando do túmulo; quebrando o casulo criado pelo companheiro pawnee; saindo do ventre do cavalo. Combalido, mas ainda mais forte e determinado. No fundo os EUA são isso, postula Iñarritu: um animal ferido que responde com violência dobrada a quem os ataca, nunca se sentindo no dever de interromper, ele próprio, o ódio.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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