Quando Estou com Marnie

Quando Estou com Marnie

É praticamente impossível ter 12 anos e se sentir perfeitamente ajustado ao mundo. A mídia te convence que todo o seu dia a dia está errado de acordo com um padrão que não existe, reforçado em programas de TV, revistas e sites sobre estilo de vida. Seus pais te tratam como criança e te cobram atitudes de adulto. Seu corpo deixa de responder como você estava acostumado. Não há lugar no mundo que te caiba, em que você se sinta em casa. Anna, a protagonista de Quando Estou Com Marnie (Omoide no Mânî, 2015) é a encarnação viva de todo esse desajuste.

“Há um círculo mágico separando as pessoas”, diz Anna logo nas primeiras cenas, enquanto desenha sozinha sentada em um banco. O círculo interno, pensa, é o das pessoas normais, ela pensa, se colocando de fora, sublinhando sua sensação de estranhamento. A timidez patológica, que resulta em crises de asma; a orfandade e a adoção, que a fazem se sentir estrangeira em sua casa e família; os olhos azuis e cabelos castanhos ligeiramente cacheados, indicando sua origem mestiça; e o uso de roupas e corte de cabelo masculinos, sugerindo levemente um conflito sexual, são alguns dos mais claros.

A asma e o embate com a mãe adotiva levam Anna para o interior do Japão, à casa dos tios em uma simpática cidade litorânea onde a ação se desenvolve. O encontro entre a praia pantanosa, casas de diferentes estilos e épocas e as tradições culturais são a oportunidade que o filme tem de explorar o virtuosismo imagético típico do Ghibli, estúdio de animação japonesa que já nos trouxe pérolas incríveis como No Túmulo dos Vagalumes, A Viagem de Chihiro e O Castelo Animado. Cada enquadramento é um quadro vivo em que as cores explodem em beleza e emoção.

É neste vilarejo que ela conhece a Marnie do título, uma garota loira que habita na estranha casa do pântano. Pela primeira vez as duas encontram, uma na outra, um lugar que sintam bem. Um lugar para pertencer. Ao longo do filme, porém, vamos descobrindo que uma encontra na outra o que falta em suas próprias vidas. A delicadeza com que Quando Estou com Marnie trabalha as oposições, fazendo emergir da interação das duas, com calma, é parte da força desta obra.

Uma tradução literal do título original (Google Translator, relevem), Omoide no Mânî, seria “Memórias de Marnie”. A memória é o dado que se sobrepõe ao mistério envolvendo a personagem de Marnie. Ela surge com roupas deslocadas no tempo e sempre em uma atmosfera de sonho. Nunca fica claro se ela é um eco do passado, um delírio ou um fantasma, como os outros filmes do Ghibli, sempre com um pé no sobrenatural, nos levam a crer. Uma memória é, afinal, todas essas coisas.

Anna precisa resolver seus problemas e Marnie é o caminho que ela irá percorrer. E, de certa forma, vice versa. É quando aparece com força a metáfora (reforçada pelo título original, cabe lembrar) da memória. Ao compreender sua própria história, Anna entende a si mesma e descobre seu lugar no mundo. É o caminho de seu amadurecimento e auto-aceitação. O círculo mágico, enfim, pode ser desfeito.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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