Realidade e fantasia se chocam em “A Travessia”

Realidade e fantasia se chocam em “A Travessia”

Atravessar o espaço entre as Torres Gêmeas do World Trade Center se equilibrando em um cabo de aço é o momento definidor da vida de Philippe Petit, até então um simples artista de rua de Paris. Seu ato, ao mesmo tempo, se tornou definidor das estruturas gigantescas de aço e concreto que se destacavam no horizonte de Manhattan. Pelo menos, até o 11 de setembro de 2001, quando elas vieram abaixo na maior ação terrorista realizada em solo americano do último século. Ao celebrar, porém, um ato artístico que ressignificou aquele espaço, “A Travessia” celebra não apenas a coragem, habilidade e persistência do artista, mas também a própria estrutura arquitetônica que desafiou os limites do gênio humano.

Esticar um cabo de aço entre as Duas Torres, sem pedir nenhuma permissão para as autoridades, e caminhar sobre ele já é, em si, uma espécie de delírio. De sonho. Por isso, Robert Zemeckis, o diretor, opta por reforçar o tom de fábula, mais ou menos como já havia feito em “Forrest Gump: O Contador de Histórias”, com mais graça, ou em “O Expresso Polar”, com menos, como falta de opção. Esses outros trabalhos, porém, são obras de ficção (ainda que “Forrest Gump” se sustente, em parte, pelo confronto entre ficção e realidade), diferente de “A Travessia”, questão que, nesse caso, amplia as possibilidades.

É o próprio Petit (Joseph Gordon-Levitt, de lentes de contato azuis e sotaque francês trabalhado fonema a fonema) quem conta sua história do alto da tocha da Estátua da Liberdade, não por acaso, uma estrutura igualmente icônica da paisagem nova-iorquina presenteada por franceses, com o World Trade Center ao fundo. E é neste tom, misto de memória e nostalgia (daí o preto e branco do começo) que a trama se desenvolve. Ele se apaixona pelo espaço entre as torres, conhece seu mentor, o artista de circo Papa Rudy (Ben Kingsley) e arruma cúmplices para seu ato, a namorada Annie (Charlotte Le Bon) e o fotógrafo Jean-Louis (Clément Sibony), quase como um herói de um conto de fadas.

Assim que o grupo de comparsas está devidamente cooptado, começa a preparação para o que Petit descreve como a maior performance artística do século 20. É quando o clima de fábula dá lugar a um uma espécie de filme de roubo. Mesmo a música, até então bastante suave e etérea, é substituída por batidas aceleradas com a marcação de um thriller leve. Tudo é ilegal, afinal. Essa mudança de tom não chega a ser um choque, porque Zemeckis consegue transitar entre os gêneros com bastante elegância, sem nos tirar da fruição.

Então, chega a hora da tal caminhada. Esse é um momento particularmente brilhante de “A Travessia”, já que esse clima de filme de roubo é usado para reforçar a tensão do espectador. Tudo dá errado. Nada sai como planejado. O tempo passa, os trabalhadores começam a ocupar as Torres Gêmeas, alguns dos comparsas desistem e as coisas parecem ter sido em vão. Até que ele dá o primeiro passo na corda, imediatamente devolvendo o filme para seu clima de fantasia. É quando Zemeckis amplia todo o potencial tecnológico que tem nas mãos, algo apenas ensaiado nas cenas anteriores.

A câmera explora o espaço entre as Torres e, principalmente, a distância entre o cabo e o chão, de forma que em momento algum nos esqueçamos do tamanho do desafio de Petit. Especialmente o desafio mental de manter sua concentração diante da altura. Isso é muito importante, porque, ao mesmo tempo, acompanhamos a tranquilidade quase zen budista das expressões de Gordon-Levitt. E o contraste entre essas duas dimensões, radicalmente opostas entre si, constrói todo o clímax do filme, que se esvazia logo em seguida.
O êxtase de Petit sobre a corda, Zemeckis faz questão de reforçar, é claramente seu maior momento. Toda sua vida foi direcionada para chegar ali. Por isso, nas cenas seguintes, há uma certa melancolia no olhar que Gordon-Levitt empresta ao seu personagem, refletida e potencializada na forma como ele encara Annie, que, por usa vez, parte em busca de seu próximo sonho. Já não há mais aquela faísca do impulso criativo, o que talvez seja um dos aspectos mais interessantes da história. “A Travessia” explora isso relativamente pouco, deixando mais para as entrelinhas o vazio existencial que se instala depois de se fazer uma das coisas mais incríveis que um ser humano pode fazer, o que é uma pena, mas não chega a tirar seu brilho.

Talvez por isso, “A Travessia” seja narrado pelo próprio Petit, que recorda o passado para reviver sua trajetória. O que sobra, depois de se protagonizar uma das mais ousadas performances artísticas do século 20, é apenas a possibilidade de contar e recontar sua própria história.

Publicado originalmente no Portal POP.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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