“Sense8” coloca transcendência em oposição ao individualismo

“Sense8″ começa com Angelica, vivida por Daryl Hanna, sofrendo para dar à luz um novo grupo de oito sensates. A partir daí, essas pessoas irão não apenas conversar entre si, como também poderão acessar as memórias e habilidades umas das outras. Com essa premissa, os irmãos Andy e Lana Wachowski, junto de J. Michael Straczynski, repetem e expandem a mensagem de “A Viagem”, adaptação que fizeram de “Cloud Atlas”, de David Mitchell: nós não estamos isolados; somos parte de algo muito maior do que a limitação de nossos sentidos conseguem perceber.

Isso é reforçado tanto pela premissa desses oito que se tornam interconectados, quanto pela forma com que os Wachowski (junto dos outros diretores, como Tom Tykwer, James McTeigue e Dan Glass) trabalham para demonstrar isso. Eles filmam de forma afetuosa, aproximando a câmera de seus personagens, especialmente nas (muitas) cenas de sexo. É com esse mesmo sentimento que eles filmam as diversas transições entre os personagens, que começam a aparecer nas vidas uns dos outros, gerando primeiro estranheza e depois afeto. Por conta disso, não há como não se apegar aos personagens depois de assistir aos 12 episódios.

A força de “Sense8″ reside na forma como essas oito pessoas, as mais diferentes possíveis, ainda conseguem se relacionar de forma tão íntima. É bem provável que seja a cena de sexo do sexto episódio a que melhor representa isso (ainda que haja um forte paralelo, alguns episódios adiante, quando todos os oito revivem o momento em que nasceram). Além de ter sido filmada com uma delicadeza ímpar, a cena também ajuda a mostrar como eles estão interligados, independente de gênero, raça ou cor. É um momento muito poderoso, mas não é, nem de longe, tão marcante quanto os diálogos que travam entre si.

O postulado dos Wachowski é comprovado quando eles colocam Sun, uma mulher de negócios de Seul que passa as noites competindo em torneios ilegais de luta, para conversar com Capheus “Van Damme”, um motorista de ônibus do Quênia que luta para conseguir comprar os remédios para sua mãe, portadora do vírus do HIV. Essa dinâmica se repete ao longo de toda a série, mas é difícil pensar em dois personagens tão distantes quanto esses dois. Nivelar os problemas de pessoas tão diferentes e tão distantes é o que faz de “Sense8″ uma série acima da média.

Esse é o grande trunfo de “Sense 8″: partir de uma premissa do campo da ficção científica para tratar de transcendência, o que, talvez, seja o tema mais caro aos Wachowski em sua filmografia. E toda a série é marcada por esses pequenos detalhes, que mostram como estamos bem menos isolados do que gostamos de pensar. Mesmo antes de “renascerem” como sensate, eles já tinham suas vidas intercaladas. Os remédios da mãe de Capheus são produzidos pela companhia farmacêutica indiana onde trabalha Kala, a noiva que não quer se casar. Essa companhia, por sua vez, é parte de um conglomerado industrial comandado pela família de Sun.

É por isso que todos os antagonistas de “Sense 8″ são tão indiviualistas. É uma forma de contrapor radicalmente a relação íntima que os oito têm entre si, que começa a deixar mais fluida justamente essa noção de indivíduo. Note como o irmão e pai de Sun nem piscam para lhe colocar na cadeia para salvar a si mesmos e a empresa. Ou como a gangue Super Poderosos do Quênia não se importa em matar e torturar para ter o que quiser. Ou ainda como a mãe de Nomi, uma ciberativista transgênero que namora uma mulher negra, insiste em lhe chamar de Michael, seu nome de batismo. Isso para ficar apenas nos mais óbvios.

A questão de gênero é muito importante para os Wachowski. Lana nasceu como Larry, mas fez uma operação de mudança de sexo e readequou sua identidade corporal ao que sentia. Talvez por isso os dramas de Nomi e Lito, o galã de cinema mexicano (terra onde o machismo é lei) que esconde um relacionamento homoafetivo, sejam tão pivotais para “Sense8″.

Essa relação metalinguística aparece o tempo todo e é uma oportunidade para os Wachowski de passear por diversos estilos de cinema. Desde o melodrama mexicano, até os musicais indianos, porque Kala é uma aficionada, passando pelos filmes de luta de Jean Claude Van Damme e “Conan”, de John Millius. Mas há, nisso também, uma mensagem escondida. Os irmãos estão nos dizendo que assim como os sensate se ligam entre si através dos sentidos, eles também conseguem se conectar com todos nós através dos seus trabalhos. Por mais que a experiência com o audiovisual seja individual, há uma conexão profunda com todos aqueles que assistem a um filme e a uma série.

Claro, é uma série de ficção científica e há um consenso de que os dramas desses personagens não sustentariam a trama. Por isso, é preciso ter uma grande conspiração que busca rastrear e lobotomizar os sensate. É aí que fica importante o fato de eles poderem acessar as habilidades uns dos outros, já que combinados eles se tornam uma espécie de super-espiões. É de onde partem as cenas de ação de “Sense8″, que envolvem eles sofrendo até o último minuto, até que outro assuma o lugar e resolva a situação. Mas, fica realmente interessante quando eles conseguem intercalar entre si de forma mais ágil, como, por exemplo, na cena de perseguição da polícia a Nomi, ou quando Will, o policial de Chicago, está tentando salvar Riley, a DJ islandesa.

Já é possível dizer que o formato ideal para os Wachowski seja uma série dentro de uma empresa como a Netflix, que não se importa em explorar temas adultos ou complexos. O cinema é muito restritivo para eles. Mas o formato serializado pode conter uma armadilha. Se essa primeira temporada focou na aproximação dos oito e no debate sobre a transcendência em oposição ao individualismo, o que sobrará para a próxima? Claro, pouco se sabe sobre a tal conspiração que está atrás deles, mas uma das forças de “Sense8″ foi, justamente, deixar isso de lado, focando-se na humanização dos personagens. Infelizmente, porém, só teremos respostas para essas perguntas no ano que vem.

Publicado originalmente no Portal POP.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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