O primeiro plano de “Beasts of No Nation” é o que se chama de enquadramento dentro do enquadramento. A câmera está voltada para um jogo de futebol, observando através do quadro da moldura de uma televisão. “TV da imaginação”, como veremos Agu (Abraham Attah) descrever depois. Aos poucos a imagem abre para revelar outras coisas que estão em volta. Com isso, Cary Joji Fukunaga nos diz que há muito mais sobre a guerra africana do que irá aparecer no filme. Que o cinema de ficção não dá conta de uma realidade ainda mais dura e desesperadora do que a que veremos no filme.
O apuro estético meticuloso preenche todo o filme. Mérito de Fukunaga, que também assina a direção de fotografia (além do roteiro, adaptado do livro de mesmo nome escrito por Uzodinma Iweala). Por isso muitas sequências parecem ter sido tiradas de um sonho, com as bordas da tela esbranquiçadas, remetendo ao jeito que muitos filmes mostram flashbacks. Em seu momento mais radical, em uma sequência em que Agu mergulha em uma chacina, a paleta de cores é trocada completamente. As plantas verdes ficam vermelhas e todo o resto perde cor. Melhor evitar a fotografia realista na hora de retratar algo tão brutal.
De que outra forma é possível tratar de um assunto tão assustador? Agu, uma criança feliz, fruto de uma família amorosa, se torna um assassino frio pelas mãos do Comandante (Idris Elba). Seu corpo e sua alma sofrem tormentos impensáveis. Sua infância e inocência foram destroçadas pela guerra. Em um dos momentos menos metafóricos, em suas conversas solitárias com Deus, ele próprio questiona se um dia poderá a voltar a fazer coisas de criança.
Daí a importância de centrar a história sob o ponto de vista infantil, que vai muito além da simples denúncia (ainda que urgente e necessária) de que crianças estão sendo transformadas em soldados para lutar uma guerra inútil e absurda, como são todas. A guerra, afinal, é justamente a destruição de qualquer tipo de inocência. Especialmente para os soldados, que estão na linha de frente e precisam protagonizar a carnificina, independente de que lado esteja em relação à arma.
Esta é uma questão central para “Beasts of No Nation”. Somente em sua última cena é que veremos o Comandante pegar em uma arma. Não é sua função. Seu trabalho é armar pessoas abaixo de si e deixar que elas funcionem como escudo e lança ao mesmo tempo. Ele precisa funcionar como um motivador, operando a lavagem cerebral necessária para que os soldados avancem sem pestanejar. Ao mesmo tempo, ele é parte de uma engrenagem maior, sendo motivado a proteger quem está acima de si mesmo. Até se sentir traído, sendo colocado em uma posição tão infantilizada quanto a que submete seus soldados-crianças.
Fica claro que a guerra já não faz sentido. As diversas siglas que compõem as diferentes facções são só letras. Não há ideologia que se sustente ante a barbárie. O que resta é a vontade de lucro pessoal. Algum tipo de ganho que justifique os sacrifícios. O Comandante encarna tudo isso. Seu discurso, heróico, quase messiânico, se esvazia rapidamente, mas ele não tem outra alternativa senão viver pelo que prega (não é gratuita a presença de um pastor no começo do filme, que discursa enquanto o pai de Agu, um professor e liderança local de postura crítica, finge dormir demonstrando seu tédio).
O fim da infância já havia aparecido, ainda que marginalmente, na obra de Fukunaga. Seu longa de estreia, “Sin Nombre”, mostra a perseguição de um integrante de uma gangue mexicana depois dele ter assassinado seu próprio líder. Em muitos sentidos, os dois filmes trabalham a lógica do grupo como culto e da violência como profissão de fé. Comparando os dois trabalhos, fica claro que a guerra pelo tráfico de drogas no México não é tão diferente da guerra por territórios na África. O problema é humano.
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Publicado originalmente no Portal POP.