Era Uma Vez… Em Hollywood

O próprio Quentin Tarantino já fez essa divisão de sua obra. De um lado haveria uma espécie de universo real, ainda que ultra-violento, como em Cães de Aluguel (1992) e Pulp Fiction: Tempo de Violência (1994). De outro estariam abordagens ainda mais fantásticas, representadas em boa parte de sua obra recente, como Kill Bill (2002 e 2003), Bastardos Inglórios (2009) ou Django Livre (2012). Seriam estes últimos os filmes que os personagens de seus trabalhos dos anos 90 assistiriam para se divertir. Era Uma Vez Em… Hollywood (2019), que estreia esta semana no Brasil, de alguma forma concilia estes dois polos. Ainda que eles nunca tivessem sido exatamente opostos, não tiveram oportunidade de coexistir simultaneamente.

A dualidade, portanto, é o grande tema de Era Uma Vez Em… Hollywood, começando pelos protagonistas: o ator Rick Dalton e seu dublê, amigo e faz tudo – “mais do que um irmão, menos do que uma esposa” – Cliff Booth, vividos por Leonardo DiCaprio e Brad Pitt, respectivamente, resgatando a parceria de Django Livre e Bastardos Inglórios com Tarantino. O homem e sua sombra vagam por uma Los Angeles que já não reconhecem como sua, cheia de hippies, atores que não saem de seus personagens nem quando a câmera desliga e filmes realistas e socialmente engajados. Eles representam a Velha Hollywood, dos cowboys e musicais, e testemunham a chegada na Nova Hollywood, com suas faculdades de cinema e influências de Godard e Kurosawa.

O ano, afinal, é 1969. Os cinemas receberam tanto o Bravura Indômita original, de Henry Hathaway, quanto Meu Ódio Será Sua Herança, de Sam Peckinpah. O primeiro estrelado por um envelhecido John Wayne, tributário de tudo o que Hollywood se notabilizou em fazer. O segundo, revisionista até a alma, sem heróis ou vilões óbvios, aponta para os filmes radicais que seriam lançados ao longo da próxima década. É em 69, também, que o verão do amor chega ao fim. A guerra do Vietnã entra em seu ápice, Richard Nixon faz seu primeiro mandato e a atriz Sharon Tate, casada e grávida de Roman Polanski (grande representante da geração de diretores da Nova Hollywood) é assassinada em sua casa por um culto liderado por Charles Manson. O clima de confiança entre as pessoas, beirando a inocência juvenil, é destroçado.

Rick é um ator de TV que tenta fazer sucesso no cinema, meio John Wayne, meio Clint Eastwood, meio Henry Fonda. Jovem demais para ter sido um grande astro, mas velho demais e sem treinamento formal para ser abraçado pelos diretores que começam a despontar. Ele vive na mesma Cielo Drive que Sharon Tate, interpretada por uma Margot Robbie em estado de graça. Velha e Nova Hollywood dividindo o muro. Enquanto o personagem de DiCaprio passa os dias nos estúdios, dando forma a uma gama de vilões-da-semana para diferentes séries de TV, Booth percorre as ruas de Los Angeles cumprindo as tarefas que seu amigo/chefe lhe pediu. As duas Hollywoods, uma de sonho, com seus cenários falsos, perucas e figurinos espalhafatosos, e outra real, com gente catando comida no lixo, são confrontadas por Tarantino, acrescentando assim mais uma camada de dualidade em seu filme.

Mas a maior destas ambiguidades, a que de fato reúne os dois universos de Tarantino através da imagem, acontece nas sequencias de Dalton passa no estúdio em que filma o episódio da série Lancer – ou, mais tarde, vendo um episódio de FBI que havia filmado algum tempo antes. Importante notar que ambas, FBI e Lancer, entre outros tantos citados pelo roteiro, são programas reais, exibidos na televisão americana. Ali somos transportados, ora para o próprio seriado, ora para seus bastidores. Um jogo é proposto, confundindo o tempo todo Era Uma Vez Em… Hollywood com Lancer e Tarantino se diverte com isso. A câmera se movimenta para um lado, um ator erra, e ela volta, repetindo o movimento no sentido contrário. Estamos, simultaneamente, dentro e fora da máquina de sonhos Hollywoodiana, sem cortes.

Meta-Tarantino

Em muitos sentidos Era Uma Vez Em… Hollywood é uma espécie de síntese da carreira de Quentin Tarantino. Tão violento quanto nostálgico, como toda sua obra, e, ao mesmo tempo, socialmente engajado, usando o cinema, primeiro, como lente para investigar e, segundo, ferramenta para transformar a história. Nem que seja apenas como discurso. É talvez por isso que este seja o filme em que ele finalmente se permite ser fonte de referência para si mesmo. De forma mais descarada, pelo menos, considerando que seu último trabalho, Os 8 Odiados (2015), opera em diálogo com seu primeiro, o já citado Cães de Aluguel – criminosos em um armazém conversam e apontam armas uns para os outros.

As piscadas de olho para o público que conhece o cinema de Tarantino acontecem em todos os níveis. Da escalação de elenco, cheia de recorrências (de Zoe Bell a Bruce Dern, para além dos protagonistas), até uma cena pós-créditos relacionada à icônica Red Apple, marca de cigarros fictícia que só existe em seus filmes. Mas a diversão mesmo está na carreira de Rick Dalton, com trechos salpicados ao longo da trama. A série de TV que o fez famoso, Bounty Law, é sobre um caçador de recompensas no Velho Oeste, como em Django Livre, enquanto seu filme de maior sucesso, The 14 Fists of McCluskey, acompanha um plano para matar Nazistas, como em Bastardos Inglórios. Seria autoindulgente, não fosse esta uma trama sobre Hollywood. O resultado é, ao contrário, autoconsciente. Tarantino sabe o tamanho que tem na história do cinema.

Era Uma Vez Em… Hollywood não é, porém, apenas fruto da vontade de Tarantino de se auto afirmar relevante. Boa parte da ambição vem do título, fazendo referência direta aos dois clássicos de Sergio Leone – um de seus heróis pessoais –, Era Uma Vez No Oeste (1968) e Era Uma Vez Na América (1984). Se para o italiano o “Era Uma Vez” apenas descolava seus filmes de uma certa realidade objetiva, Tarantino abraça e distorce a relação com o fato objetivo que são os assassinatos da Família Manson, colocando a obra na dimensão dos contos de fada. Não por acaso Walt Disney é mencionado nominalmente, tornando Sharon Tate uma princesa a ser protegida em seu castelo do mal que a acometerá. É por isso que quando Era Uma Vez Em… Hollywood acaba, particularmente para quem conhece a história e sabe a forma como isso afetou Hollywood, corre-se o risco de sair da sessão genuinamente emocionados, algo até então ainda inédito na filmografia de Tarantino.


Publicado originalmente na edição impressa da Gazeta do Povo.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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