O mosaico Laerte

Com Cidade dos Piratas Otto Guerra mergulha em si mesmo e no universo estético de Laerte para entregar um filme-ensaio existencialista

A Cidade dos Piratas deveria ser, originalmente, parte integrante de uma trilogia de filmes animados (que, na verdade, seria uma tetralogia), cada um focando no universo dos quadrinhos dos Três Amigos. O primeiro foi Rocky e Hudson (1994), com os personagens de Adão Iturrusgarai – curiosamente, o quarto e último dos amigos. Depois veio Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock’n’Roll (2006), da obra de Angeli. Com a tragédia da morte de Glauco, o que complicava a cessão de direitos, a melhor alternativa para seguir com o projeto seria com os Piratas do Tietê, criado por Laerte. Ou assim pensou Otto Guerra, o diretor destes projetos todos.

“A Laerte trocou de gênero e ela passou a entrar em surto com os personagens. Ela chama dos Piratas de múmias, machistas. E eu tive um câncer gravíssimo, com metástase. A vida real atropelou a história dos Piratas”, disse Otto em entrevista por telefone. A transição de Laerte provocou uma mudança radical em seu trabalho. Os quadrinhos se tornaram mais alegóricos e existencialistas e menos preocupados com a estrutura clássica do humor. Hugo se tornou Muriel e um simpático Minotauro encarnou a dualidade física que a quadrinista vivia em seu dia a dia. A solução encontrada pelo diretor foi incorporar a investigação estética das tiras no filme.

Não apenas isso. Ele resolveu se colocar na história, com sua decadência física se tornando tão metafórica quanto as mudanças na vida de Laerte, que aparece através das diversas entrevistas que deu desde que anunciou sua transição (e, em geral, respondendo as mesmas perguntas). Quando o roteirista Rodrigo John e a produtora Marta Machado brigaram com ele, isso também foi para o filme. Quando seus animadores se revoltaram contra ele, isso também foi para o filme – ganhando, inclusive, um divertido paralelo com um motim dos Piratas do Tietê, que não foram de todo cortados do filme. Todos, segundo o próprio Otto Guerra, é importante que se diga, o perdoaram depois de terem visto o resultado final.

O filme é um mosaico criado a partir do universo simbólico da Laerte, com cada fragmento permitindo leituras mais complexas sobre os outros. A narrativa do político homofóbico (com a brilhante imagem de barris de ódio armazenados cuidadosamente em um depósito) ganha contornos para além do denuncismo rasteiro ao se colocar junto do Minotauro. Hugo/Muriel, por outro lado, apresenta uma faceta mais leve do estigma da transição de gênero em contraponto ao peso do médico casado que posa como modelo para um escultor que o percebe como um Minotauro em sua obra. “Colocamos tudo dentro de caixinhas e precisamos saber ler as pessoas, o que ela é. E isso é uma grande sacanagem com os humanos. Mesmo entre pares, as diferenças são muito grandes. E essas diferenças incomodam, quaisquer que sejam elas”, comenta Otto.

Se há um tema interno em Cidade dos Piratas é justamente o da alteridade, o da capacidade e importância de perceber o outro em suas individualidades. A sequência inicial, com portugueses adentrando a mata e tendo um inusitado e sangrento encontro com índios/piratas aponta para a dificuldade central do brasileiro em aceitar diferenças. “A Laerte foi premonitória. É um filme muito atual. Pelo conteúdo, pela forma, esse filme vai ser visto daqui a 50 anos”, conta Otto, que depois emenda que “a intenção do filme tem a ver com poesia. Não tem a ver com roteiro”, revelando o caráter ensaístico da obra.

“Eu já achava um desperdício mesmo fazer uma história bonitinha com os Piratas. Então a forma que eu achei para trazer o universo dela foi colocar no próprio filme o conflito dela com os personagens e o fato de que eu ia morrer também. Isso acabou entrando no filme”, revela o diretor. Isso dá a Cidade dos Piratas uma certa urgência que costumava aparecer nas produções brasileiras do começo dos anos 90, entre o fim da Embrafilme e a fundação da Ancine. “Eu falo nos Festivais, ‘fiz esse filme achando que seria o meu último, mas aí eu não morri. Agora estou aqui passando vergonha’”, diz Otto, cavando – e conseguindo – um elogio do entrevistador.

Publicado originalmente na edição impressa da Gazeta do Povo.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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