Um Melodrama Tropical

Karim Aïnouz, um dos mais importantes cineastas brasileiros, chega aos cinemas com o instigante A Vida Invisível

Nos últimos anos a indicação brasileira ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro foi, digamos, pouco expressiva. Com filmes sem personalidade ou impacto cultural, esquecidos no instante em que deixaram de figurar na lista da premiação. Neste ciclo, ao contrário, através de uma mudança no método de escolha, temos A Vida Invisível, adaptação do romance de Martha Batalha, uma obra de um artista que, no mínimo, tem algo a dizer. E como diz! “Estou achando maravilhoso. Estou achando incrível”, fala Karim Aïnouz, o diretor, um dos mais importantes entre os brasileiros na atualidade, evitando o proselitismo típico de quem desdenha de uma premiação como a do Oscar.

Para Karim, essa pré-indicação é resultado dos mais de 20 anos de uma política bem-sucedida de fomento de cinema. Afinal, antes mesmo do Oscar “a gente ganhou dois prêmios em Cannes, que o Bacurau [de Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho] ganhou o Prêmio do Júri e a gente ganhou o Un Certain Regard, e no dia seguinte a gente achou que tinha ganhando a Copa do Mundo”. E ganharam mesmo. Desde os tempos de Glauber Rocha que o cinema brasileiro não era tão relevante quanto neste momento. “É importante que o cinema fique visível. É importante para o público brasileiro. Acho que eu não estaria lutando com tanta vontade se fosse cinco anos atrás”, revela o diretor. Visibilidade é um tema caro para Karim dentro e fora de seu filme.

A Vida Invisível chega aos cinemas nacionais oficialmente na próxima semana (novembro de 2019), depois de muitas sessões de pré-estreia. Aïnouz o descreve de forma bastante precisa como um “Melodrama Tropical”, buscando elevar o subgênero que sempre encantou o grande público brasileiro ao longo dos últimos 100 anos, seja como folhetim, rádio ou telenovela. A pesquisa, inclusive, partiu destes clássicos, “principalmente as novelas da Globo da década de 70. E havia algo de muito encantador, por várias razões. Acho que tinha um tempo de cena que era diferente do que a gente tem hoje, tinha um elenco que vinha do teatro, que não estava habituado em só fazer televisão”.

Da estrutura clássica do melodrama a trama de A Vida Invisível usa a ideia amor impossível. Desde Romeu e Julieta (e antes até), muito do interesse do público nas desventuras dos personagens está na impossibilidade de consumar o amor. Geralmente, falamos do amor romântico, entre um casal, mas aqui se trata da relação entre duas irmãs, Eurídice e Guida, vividas por Carol Duarte e Julia Stockler. E o que se interpõe entre elas é a discreta, ainda que poderosa, violência social, geralmente advinda do machismo estrutural brasileiro. Uma é expulsa de casa quando o pai descobre uma gravidez fora do casamento, outra sofre em um casamento, no mínimo, pouco harmônico.

Essa dimensão de crítica social não é alheia ao melodrama, como lembra o próprio Karim. “Eu pensava muito nos melodramas de família que haviam sido escritos nas décadas de 50 e 60 no cinema americano. O quanto eles eram contundentes politicamente. Conseguiam juntar duas coisas que era afetar o público e, ao mesmo tempo, tinha o encantamento cinematográfico”. Ele cita em particular os trabalhos de Douglas Sirk, como Imitação da Vida (1959) e Tudo Que o Céu Permite (1955), como suas grandes inspirações. Ambos usam os pequenos dramas da vida doméstica americana como gancho para discutir questões sérias sobre a sociedade – raça, gênero e classe, no caso dos dois filmes nomeados.

A Vida Invisível colocar em pauta a questão da violência masculina, coisa que apesar de diluída no filme, dificilmente escapa ao espectador. “A violência maior é quando você está sendo violento, mas você não sabe que você está sendo violento”, postula o diretor, que completa: “o comportamento masculino, precisamente nos personagens desse filme, extremamente violento. E eu não acho que ele seja violento só na cena onde existe o que é quase um estupro marital consentido, mas ele é violento também quando você tendo uma personagem aguando as plantas como o marido fazia, mesmo que o casamento não tenha sido perfeito”. As vidas de Eurídice e Guida são atravessadas o tempo todo pelo machismo, particularmente evidente nas classes médias do Rio de Janeiro da década de 1950 retratadas na trama. “Então é um filme que fala sobre quanto o masculino pode ser tóxico. É muito perigoso aquilo que o pai e o genro fazem com essas mulheres, então era importante falar disso de um jeito que seja encantador, né?”.

Para o diretor não há contradição em usar o lado encantador, novelesco, da trama para tratar de temas sérios. É parte do que ele chama de “estratégia política do cinema”. É preciso que o filme seja emocionante, “mas você não saber porque eu te emocionei e essa emoção você leva para casa e faz com que você a transforme em uma outra coisa”. O que vale inclusive para se fazer um filme que tenha interesse em atrair o público. “No Brasil se criou um binarismo que eu acho muito pouco produtivo que é o cinema de autor e o cinema de público. E isso é uma coisa que vem me assombrando muito nos últimos anos. E eu fico pensando nos autores que eu adoro. O [Stanley] Kubrick é um grande autor e ele nunca negligenciou o público. Nunca foi colocado neste lugar de porque ele era autor ele não teria alcance comercial”.

Diferente do cineasta americano, conhecido por seu perfeccionismo, Aïnouz constrói A Vida Invisível de outra forma. “Tudo é intencional. Tudo é engenharia, mas tem que ser engenharia com poesia. Então era muito importante fazer um filme que falasse do passado, mas com algum ponto de conexão com o presente”, e depois emenda dizendo que “o mais perigoso desse filme seria se a gente o visse como um objeto do passado, como se o que importasse fosse apenas as roupas, as cores. Claro que isso importa, mas acho que precisa ser habitado por um zeitgeist do agora”. Tudo isso, evidentemente, parte de um longo processo: “No começo era muito diferente. Achava que o filme deveria ser feito por uma embocadura da década de 50, com gírias de década de 50. Aos poucos, no decorrer das filmagens aquilo foi se descascando e deixando de ser importante. E o que era importante era o centro de gravidade emocional do personagem de cada cena”.

O resultado é um filme de época, sim, mas com a atualidade e o frescor da mais contemporânea das obras. Em parte, pela forma como a sociedade brasileira nutre uma histórica necessidade de manter determinadas estruturas de poder em seus lugares, em parte pela habilidade de Aïnouz em manipular os elementos do melodrama, tanto do cinema quanto nas versões serializadas brasileiras. Se isso faz de A Vida Invisível um forte candidato ao Oscar, talvez nem sequer importe diante de uma obra que é tão ambiciosa e, ao mesmo tempo, recompensadora.

Publicado originalmente na edição impressa da Gazeta do Povo.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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