A Morte de Stalin

A realidade é um problema para o cinema. Desde de seu nascimento, ao causar sobressalto aos que viram o trem se aproximar na notória projeção dos Lumière. A ligação direta com o mundo, aliada a proximidade com a percepção humana, norteou muito da discussão filosófica e psicológica ao longo do Século XX. O problema segue sem solução completa ainda hoje e, enquanto discutimos, o cinema seguiu distorcendo, revendo, reenquadrando e reinventando a realidade. Não raro, porém, ele, o cinema, acontece de ser suplantado pela mesma realidade que busca retratar. A Morte de Stalin (Death of Stalin, 2017) é um grande exemplo.

Armando Iannucci, o diretor, resolve para si o problema da factualidade ao não se interessar particularmente por ele. Em seu filme, hábil satirista político que é, ele se debruça sobre o momento de vácuo de poder. Com a titular morte de Joseph Stalin (Adrian McLoughlin), o famigerado ditador soviético, seu segundo escalão, integrado por facínoras e sicofantas, começa a disputar o comando da União Soviética. A pequenez da politicagem, infantil e egocêntrica, volta a ser tema do diretor, como sempre foi em suas séries, The Thick of It (2005-2012) e Veep (2012-2017), e em seu único outro longa, Conversa Truncado (In The Loop, 2009). Diferente destes títulos, porém, ele precisa lidar com a base factual. É aí que a realidade se impõe sobre o cinema.

Stalin era uma figura deliciosamente bizarra, como era qualquer um de seus colegas ditadores sanguinários. De Pinochet a Mussolini, de Kadafi a Saddam (para ficar nos do Século XX). Segundo o próprio Iannucci, o ditador obrigava os dirigentes do partido a ficar bebendo – enquanto ele mesmo tomava bebidas diluídas em água – até tarde da noite, vendo filmes de John Ford, aguardando o momento em que seus subordinados revelassem algo sobre si mesmos. Como inventar isso? O cinema – a ficção – não tem como dar conta de um absurdo como esse. A delícia de A Morte de Stalin é que o filme é uma imensa coleção de momentos como esse, costurados com a fleuma do humor britânico de Iannucci, que dirige como se fosse algo tão frívolo quanto Um Peixe Chamado Wanda (A Fish Called Wanda, 1988).

Do diretor de rádio que precisa reencenar uma performance musical para poder gravar para Stalin à necessidade de se compor quórum suficiente e ter que votar se é necessário chamar um médico para o ditador, quando ele passa mal. De Nikita Khrushchev (Steve Buscemi) ditando para a esposa quais as piadas fizeram sucesso com seus colegas e seu superior a Stalin ficar estatelado na própria urina no chão porque seus guardas tinham medo demais de entrar no quarto. Tudo isso passando pelo cúmulo dos presos políticos em gulags chorando a morte do ditador que os prendeu. O absurdo da realidade – diluído, de acordo com o próprio Iannucci – funciona cinematograficamente por assumir, quase desavergonhadamente, o tom farsesco.

É a permissão que Iannucci dá a si mesmo para usar suas melhores ferramentas narrativas como satirista político. Apesar de partir de um momento da história soviética, com os acontecimentos e personagens específicos dele, A Morte de Stalin poderia igualmente ser A Morte de Getúlio, Kennedy ou Perón. A cena da primeira reunião do Partido Comunista sem Stalin, em que a hierarquia de governo se restabelece em um consenso de aparências, é fruto do gênio do diretor. A câmera capta a hesitação de cada um dos presentes em levantar a mão em concordância com o ponto até que tenha certeza de que todos os outros levantaram também. O cinema reflete o absurdo da política.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

2 de comentáriosDeixe um comentário

  • A trama acompanha de forma comica os ultimos dias do lider e o caos que acontece com o regime apos sua morte. Achei um filme meio confuso com uma historia acelerada demais e muitas vezes cansativa, mesmo sendo uma satira de uma historia real, ainda assim nao gostei muito ????

    • O ritmo do Ianucci talvez seja mais adequado na televisão, como em Veep, da HBO. Mas o normal é se deparar com esse amontoado de falas que deixa a gente meio perdido mesmo.

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