Com A Forma da Água o diretor mexicano Guillermo del Toro entrega seu mais completo e tocante filme
É preciso um tipo muito particular de mente para assistir a O Monstro da Lagoa Negra, de 1954, dirigido por Jack Arnold, e simpatizar com a Criatura e não com os cientistas exploradores. O dono desta mente, no caso, é Guillermo del Toro, roteirista e diretor que queria “corrigir a injustiça histórica” do Monstro não ficar com a mocinha no clássico de horror da Universal ao criar A Forma da Água, que estreou em todo o Brasil na última quinta-feira, 1, e é o campeão de indicações do Oscar 2018 acumulando 13 categorias, entre técnicas e artísticas.
O olhar carinhoso que Del Toro oferece para o Monstro Anfíbio não é inédito em sua carreira. Desde o bom vampiro de Cronos, seu primeiro filme, até os zelosos fantasmas de A Colina Escarlate, passando pelas duas belas adaptações dos quadrinhos de Hellboy, suas criaturas são quase sempre figuras trágicas que por fim se revelam as mais humanas. O horror, gênero caro ao diretor mexicano, encontra sua origem no preconceito dos personagens, resultando em atos de violência infligidos por aqueles que possuem uma agenda de extremo individualismo ou não toleram o diferente.
Em A Forma da Água, porém, a simpatia de Del Toro pelas criaturas fantásticas se manifesta cinematograficamente de uma forma pouco usada em sua obra. Nos melhores entre seus filmes, A Espinha do Diabo e O Labirinto do Fauno, os clichês do horror são usados para gerar dúvida no espectador em relação aos elementos fantásticos. Os enquadramentos, cortes nos momentos estratégicos, trilha sonora e demais escolhas estéticas em geral apresentam os fantasmas e monstros como mistérios ameaçadores, expectativa que é frustrada ao longo dos filmes.
Apesar de usar diversos elementos do cinema de horror, A Forma da Água encontra seu norte estético e narrativo na fábula – devidamente subvertida com alguma nudez e sexo que demoram pouco a aparecer. Elisa, a personagem de Sally Hawkins, é apresentada como uma princesa no prólogo narrado por por seu vizinho Giles, vivido por Richard Jenkins. Em seguida, através de delicados movimentos de câmera e da bela trilha de Alexander Desplat, Del Toro usa as ferramentas do cinema para nos apresentar o reino e subjetividade da personagem, o riquíssimo universo interno de Elisa intimamente mesclado em sua rotina diária.
Del Toro também usa as fábulas como referência para expandir a premissa tirada de O Monstro da Lagoa Negra, de onde extrai também o design básico de sua Criatura e a defesa da pesquisa científica em uma fala reproduzida pelo personagem de Michael Stuhlbarg. Elisa é muda como a Pequena Sereia, trabalha com faxina como a Gata Borralheira e vê beleza e poesia no monstro, como a Bela, de A Bela e a Fera. Com ícones reconhecíveis na superfície da trama, Del Toro se sente livre para manipular gêneros e criar uma obra tão original quanto pessoal.
Estes elementos coexistem em harmonia no universo de Del Toro, mexicano de Guadalajara, criado pela avó, uma católica fervorosa e severa, o que resultou em admiração pela iconografia cristã combinada por uma forte rejeição a figuras de autoridade e hierarquias rígidas. As figuras de autoridade como vilãs e o catolicismo como mapa estético, aliados ao apreço por insetos (ao contrário de Luis Buñuel, que os colocava em seus filmes para tentar lidar com sua fobia), monstros e engrenagens, integram boa parte das obsessões que irão figurar em seus filmes.
Criaturas fantásticas
Elisa acorda em um divã; se masturba na banheira enquanto os ovos são cozidos; faz companhia para Giles; ouve o dono do cinema abaixo de seu apartamento recomendar A História de Ruth, épico bíblico de 1960 que está em exibição; cochila no ônibus rumo ao trabalho; passa as noites limpando as instalações secretas do governo ao lado de sua tagarela amiga Zelda, papel de Octavia Spencer; e dorme no mesmo divã para repetir tudo no dia seguinte. O encanto da rotina só é quebrado (ou, talvez, substituído) quando ela tem seu primeiro contato com a Criatura, interpretada por Doug Jones, colaborador habitual de Del Toro.
Hawkings transforma Elisa em uma criatura tão fascinante quanto o próprio Monstro de Jones. Segundo Del Toro, “escrevi o filme para Sally [Hawkins]. Queria que Elisa fosse bonita, mas não como em um comercial de perfume. Queria que você acreditasse que esse personagem poderia se sentar ao seu lado no ônibus. Mas, ao mesmo tempo, ela teria uma luminosidade, uma beleza, quase mágica, etérea”. Elisa é tudo isso e muito mais, usando seu expressivo rosto e corpo para dizer mais do que seria possível com palavras.
O que move a trama é o improvável, ainda que crível, amor entre Elisa e a Criatura, presa na instalação científica para ser examinada e dissecada, mas o que impressiona é a habilidade de Del Toro, junto de sua corroteirista, Vanessa Taylor, de fazer com que os outros personagens sejam tridimensionais. Todos possuem desejos e necessidades específicos, oriundos de suas particularidades. Giles só quer ser amado e reconhecido por sua arte enquanto Zelda, apesar de falante, busca a discrição para manter a si mesma e a Elisa longe de confusão. Mesmo o Dr. Hoffstetler de Stuhlbarg é uma figura cheia de nuances em sua relação com a Criatura.
O que nos leva ao grande vilão do filme, Richard Strickland, ex-militar e chefe de segurança que engrossa a lista de antagonistas rígidos e violentos interpretados por Michael Shannon. Del Toro é bem pouco sutil em sua caracterização. Strickland é um pai de família religioso de classe média que preenche seu vazio existencial com a compra de um carro novo. Com passado militar, seu autoritarismo se reflete no preconceito racial dirigido à Zelda – “talvez Deus seja mais parecido comigo do que com você” –, no desprezo com que lida com as faxineiras e na violência com que ataca a Criatura sob o pretexto de domá-la.
O autoritarismo egoísta e violento de Strickland é confrontado com a diversidade empática de seus opositores. A mudez de Elisa, a homossexualidade de Giles e a cor de pele de Zelda os obrigam a experimentar o mundo de uma forma radicalmente diferente do vilão. Ele até se engana, justificando para si mesmo que faz o que faz para manter o status social e financeiro da família, mas a verdade é que ele odeia e quer destruir ou subjugar tudo aquilo que considera diferente. Del Toro, um mexicano nos EUA, reconhece e teme o tipo de horror que Strickland é capaz de infligir sob o jugo das boas intenções.
Um filme sobre cinema
O cinema e seu potencial para encantar e emocionar está entrelaçado no roteiro de A Forma da Água. O momento em que Giles, ao ver uma reportagem sobre violência policial para com as comunidades negras, troca de canal para o que parece ser apenas um inocente musical, somado ao fato de o cinema sob seu apartamento se chamar Orpheum (em alusão ao filho do deus dos sonhos), parece indicar que Del Toro advoga pelo escapismo descerebrado. Esta, porém, seria uma constatação enganosa.
No momento em que o relacionamento entre os amantes chega ao ponto de ebulição, impossibilitados de se comunicar de forma eloquente, A Forma da Água dá voz para Elisa na forma de um musical em preto e branco – Let’s Face the Music and Dance, com Fred Astaire e Ginger Rogers, para ser exato. É o próprio cinema que permite a expressão do amor e a resistência diante do autoritarismo de Strickland, sendo usado como ponte entre os personagens, resultando em uma bela homenagem aos clássicos da Hollywood romântica.
Mesmo a mudez de Elisa é usada como artifício cinematográfico, com a personagem se tornando uma espécie de avatar de Del Toro, interagindo com o mundo através de imagens. A riqueza de seu universo interno explode no padrão verde azulado da luz de A Forma da Água, como se ela estivesse sempre a flutuar em um oceano.
O resultado é uma espécie de filme-síntese da carreira de Guillermo del Toro, cheio de pequenos detalhes que evocam o frescor atribulado de um diretor estreante que, por não saber se conseguirá fazer outro, coloca o máximo possível de discursos. Em A Forma da Água, porém, essa confluência surge harmônica, coexistindo como uma complexa sinfonia que só faz sentido quando executada em toda sua completude.
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Texto publicado originalmente na edição impressa da Gazeta do Povo.
Olá, Luiz.Aproveito a ocasião, para elogiar seu trabalho. Suas críticas são sempre muito interessantes e bem escritas. Gostei muito dos comentários sobre “A Forma da Água”. Para mim é a melhor a respeito desse filme de Del Toro, um dos meus cineastas favoritos na atualidade. Em seu texto claro e objetivo, você conseguiu expressar muito bem as sutilezas de “A Forma da Água,seus subentendidos nas entrelinhas, assim como definiu muito os aspectos específicos da peculiar filmografia do diretor , para mim o melhor representante do chamado “cinema fantástico”.
É mesmo notável como Del Toro consegue subverter às regras da produções de gênero, enfatizando a maneira como ele descreve personagens femininos cativantes, e que não se sujeitam á postura de vítima. Também vale destacar a exploração diferenciada do diretor do tema da monstruosidade. Em seus filmes, os verdadeiros monstros são os seres humanos, aparentemente normais, enquanto as criaturas monstruosas são inofensivas, gentis e até capazes de amar, a exemplo da Criatura de “A Forma da Água”.
É interessante como o diretor por meio de artistícios da fantasia consegue de forma muito contudente discutir assuntos muitos atuais, tais como a opressão a grupos minoritários, que aparece de forma muito marcante em “A Forma da Água”,
Além disso, a estética de seus filmes é um elemento que sempre chama atenção. Nas produções assinadas pelo diretor chama muito a atenção o modo como ele consegue extrair beleza e e poesia daquilo que a primeira vista é horrivel e grotesco.
Para mim, Del Toro é o melhor cineasta autoral do cinema fantástico da atualidade, superando Tim Burton em alguns aspectos.
Acho que o Oscar de melhor filme para “A Forma da Água” foi muito merecido, principalmente por ter vindo de encontro ao contexto complicado social e político de 2018 nos Estados Unidos. Também na categoria de melhor diretor, foi o reconhecimento do imenso talento de Del Toro como realizador, capaz de criar mundos imaginários muito ricos e complexos, que dão margem a várias leituras em diversas áreas. Sem dúvida, para mim Del Toro é um diretor que tem uma marca pessoal, e que vale a pena sempre ficar de olho, uma vez que ele é capaz de criar sempre algo surpreendente capaz de fascinar e aterrorizar ao mesmo tempo, o que poucos diretores conseguem fazer no atual cinema fantástico.
Valeu Alessandro. E concordo contigo. Del Toro é um baita diretor.