A sequência que abre “Ponte dos Espiões” é impecável. Com uma precisão cirúrgica e numa impressionante economia de diálogos, Steven Spielberg nos conta tudo o que precisamos saber sobre Rudolf Abel (Mark Rylance), imigrante que é investigado e logo será preso por espionagem contra os EUA. A cena fica ainda mais importante para estabelecer o caráter do advogado James B. Donovan (Tom Hanks), que ficará responsável por defendê-lo em um tribunal democrático. Nós sabemos que Abel está recebendo e enviando informações clandestinamente para alguém (nunca fica claro se é a Alemanha Oriental ou a União Soviética). Donovan não, mas o defende mesmo assim.
A primeira metade de “Ponte dos Espiões” é dedicada à defesa de Donovan a Abel. Seus motivos para aceitar o trabalho são os mais patrióticos possíveis, apesar de todo o mundo questionar o fato de ele estar defendendo um espião, cuja única motivação é destruir o modo de vida americano. O foco é no confronto entre a imagem que conhecemos do advogado e a imagem que o resto dos EUA faz dele (mas os melhores momentos são dedicados à relação entre defensor e defendido). Spielberg cria, então, um jogo de espelhos, com imagens que se opõem umas às outras. Espião, pintor, advogado, pai de família. Tudo jogado para o alto no momento em que o diretor encontra possibilidades para mergulhar a trama no mais batido dos melodramas.
Spielberg está interessado em emocionar as pessoas. Não fosse a atuação de Hanks, sempre disposto a humanizar seus personagens, Donovan seria apenas um brinquedo nas mãos do diretor para evocar a história do grande homem que entendia o direito de defesa do ser humano como algo mais importante do que o fato de ele ser culpado ou não. Um mito, como aconteceu com Abraham Lincoln no último filme do diretor. Especialmente pelas cenas em que a família questiona as inclinações do advogado ou ainda na implicação de que sua filha estaria namorando seu assistente (algo que nunca chega a render mais na história).
Se o jogo de imagens junto da relação entre Donovan e Abel traz os melhores momentos da primeira metade, na segunda – em que o advogado vai para Berlim negociar uma troca de prisioneiros – sobram apenas a atuação de Hanks e a graça com que Spielberg filma. Enquanto acompanhamos as incursões pelo lado oriental e os diálogos espertos que são a alma das sequências de negociação, “Ponte dos Espiões” ainda é um prato saboroso. Mas as desnecessárias sequências que acompanham os prisioneiros americanos, o piloto Francis Gary Powers (Austin Stowell) e o estudante Frederic Pryor (Will Rogers), jogam toda a elegância por terra.
A insistência se explica porque Spielberg está mais interessado em emocionar do que qualquer outra coisa. Daí a insistência pelo melodrama. O que não faz sentido é seu apelo pelas formas que pouco contribuem com o filme, como mostrar que Pryor tinha uma namorada no lado Oriental que tenta lhe tirar da cadeia (para depois desaparecer da trama), ou a tortura psicológica pela qual Powers é submetido. O único resultado é conseguir esvaziar os momentos em que há uma grande carga dramática a ser explorada, como quando Donovan vê crianças saltando uma grade em Nova York, remetendo diretamente à sua visão das pessoas tentando passar pelo muro de Berlim, ainda em construção na época.
O longa, então, é um filme sobre o espírito americano, encarnado por Donovan. Com um ideal debaixo do braço e a certeza de conseguir dobrar qualquer argumentação a seu favor, ele salva o dia e, no final, ainda encontra redenção perante a opinião pública, tornando-se um herói para sua família e seu povo. Spielberg sendo Spielberg e nos poupando de mais um grande filme.
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Publicado originalmente no Portal POP.