Há muito de reflexão cinematográfica no trabalho dos irmãos Coen. Não apenas nas farsas mais óbvias, como Barton Fink – Delírios de Hollywood (Barton Fink, 1991), sobre um roteirista de sucesso na Broadway que sofre para escrever cinema, ou E Aí, Meu Irmão, Cadê Você? (O Brother, Where Art Thou?, 2000), uma versão cômica e atualizada da Odisseia de Homero e portanto uma paródia de toda narrativa ocidental. Mas principalmente em filmes como Fargo (1996), um anti-noir, e Inside Llewyn Davis: Balada de um Homem Comum (Inside Llewyn Davis, 2013), uma desconstrução de normas de roteiro. Ave, César! (Hail, Caesar! 2016), pois, segue esta mesma linha: é tanto carta de amor quanto revisão crítica do cinema clássico e da grande Era dos Estúdios em um só tempo.
O amor ao cinema – ainda que não se deixe deslumbrar – chama atenção logo de cara. Enquanto caminha pelo Capitol Pictures, o estúdio fictício que já havia aparecido em Barton Fink, Eddie Mannix (Josh Brolin) passa por diversas produções que acontecem em simultâneo. A câmera se alterna entre o mergulho na cena-dentro-da-cena e o olhar dos bastidores das diversas sequências. É a oportunidade que os Coen têm para observar todos expoentes da Hollywood romântica. Musicais, dramas, faroestes e épicos religiosos preenchem a tela se alternando e, eventualmente, comentando a trama central.
Todo o filme é permeado por estas pequenas paródias. Tanto literais, como nas cenas de musical ou faroeste, como alegóricas. Os atores-personagens estão ali para evocar estereótipos da Hollywood clássica. Hobie Doyle (Alden Ehrenreich) é um cowboy lutando para viver um personagem fora de sua zona de conforto, como poderíamos tranquilamente imaginar John Wayne fazendo. Ou Valdez (Veronica Osorio), uma atriz latina de comédias como nossa Carmen Miranda. Ou ainda DeeAnna Moran (Scarlett Johansson), uma estrela à Marilyn Monroe que precisa esconder seus amantes do grande público que a percebe como um símbolo de pureza.
Outras relações com o cinema aparecem serpenteando pela história, como o flerte com o film noir. Mannix, espécie de faz-tudo do estúdio, guarda lá suas relações com os detetives durões dos filmes policiais da era do preto-e-branco. Não apenas pela forma como acumula problemas a serem resolvidos, mais ou menos como casos que se avolumam. Mas principalmente pelo drama principal que envolve o sequestro de Baird Whitlock (George Clooney), figura à Charlton Heston que estrela Ave, César!, o caro épico bíblico, filme-dentro-do-filme, que precisa se tornar um sucesso para a Capitol Pictures – o que envolve uma ótima cena de “prevenção de ofensas religiosas”.
Com Mannix acompanhamos os pequenos dramas de bastidores, também responsáveis por parte do sucesso ou do fracasso de muitas produções. Os Coen dão forma para esse aspecto da indústria do cinema na figura das gêmeas Thora e Thessaly Thacker (Tilda Swinton), colunistas e rivais pela busca das informações – cada uma considera a si própria uma jornalista, e quem faz coluna social é apenas a outra. Do outro lado do espectro estão os roteiristas que se esforçam para incluir uma agenda comunista como subtexto dos filmes – uma piscada de olho para os 10 de Hollywood. Todos esses aspectos e comentários vão sendo costurados no que resulta em um filme, digamos, altmaniano. Ave, César!, afinal, não deixa de ser uma espécie de atualização de O Jogador (The Player, 1992), em que Robert Altman usava seu estilo “panorâmico” para comentar sobre os bastidores da Hollywood pós anos 80.
Os Coen colocam em prática o princípio de montagem do patriarca da linguagem cinematográfica, Sergei Eisenstein. Para ele, no cinema, “1 + 1 = 3”, ou seja, duas sequências de imagens justapostas criarão um novo sentido impossível para elas isoladas. Assim, Ave, César! não é sobre divas problemáticas, astros alienados e roteiristas de esquerda na mesma medida em que o cinema não é nem sobre dramas de bastidores e nem sobre a opulência de cenários ou sequências elaboradas de dança. Para os eles a arte está em outro lugar. Ou ainda na união disso tudo. Os sentidos explodem pela colisão de cada um desses elementos.
Ave, César! é, portanto, o filme mais profundamente metalinguístico dos Coen. Se o grosso de sua filmografia flerta com ideias sobre o que é o cinema e como ele se manifesta artística e discursivamente, este trabalho se debruça sobre o tecido com o qual se costura um filme. É a resposta final para a pergunta “o que é cinema?”, cuja solução é ainda mais complexa do que frases feitas do tipo “a montagem” ou “o roteiro”. Para os irmãos, roteiristas, diretores e produtores de seus filmes, a arte do cinema é algo sempre maior do que qualquer determinação técnica pode prever.
O cinema transcende as fofocas, as intrigas, as disputas, a aparelhagem, os planos, os cortes e os enquadramentos. O cinema, como demonstram os Coen em Ave, César!, é tudo isso e mais. Muito mais. É por isso que, como Mannix, sempre iremos escolher o cinema diante de qualquer outra possibilidade trazida pela vida real.