Poucos diretores do cinema hollywoodiano tiveram vidas interessantes o suficiente para merecerem um filme. Desses, a de Alfred Hitchcock fica apenas um pouco atrás da de Ed Wood, já retratada no filme que leva seu nome, dirigido por Tim Burton. Sua fala pausada, comentários ácidos, senso de humor para lá de deturpado, fixação com suas loiras e predileção por temas macabros para seus filmes fazem dele uma grande caricatura de si mesmo e símbolo do cinema.
Mas “Hitchcock”, o filme, não se prende a Hitchcock, o diretor. Senão seria mera biografia que tenta abraçar uma figura e vê o mito escapar entre os dedos. Depois de “Intriga Internacional”, imenso sucesso de público, ele busca um novo projeto. É quando fica sabendo da macabra história de Ed Gein, o primeiro serial killer catalogado e diagnosticado dos EUA, que tinha virado livro, “Psicose”, tomando uma série de liberdades ficcionais. A história encanta Hitchcock, que resolve colocar sua própria carreira e estabilidade financeira em risco para financiá-lo.
Mas “Hitchcock” não se prende aos bastidores de “Psicose”. Senão seria mero extra de DVD encenado. A coisa mais importante na carreira do diretor é sua esposa, Alma Reville. O gênio por trás do gênio. Revisava roteiros, fala a fala, acompanhava toda a produção, podendo até mesmo substituir o próprio Hitchcock no estúdio, e, segundo o diretor, era a melhor editora em atividade.
O diretor, Sacha Gervasi, vai construindo seu filme em torno da relação entre Hitch, como gostava de ser chamado, e Alma, usando todos os artifícios do mais típico filme sobre relacionamentos maduros. Inclusive com os clichês envolvendo desconfianças, ciúmes e problemas conjugais que afetam diretamente no trabalho. E só quando os dois se reconciliam é que “Psicose”, o filme, fica pronto para ser lançado. Perto dos grandes thrillers de Hitchcock, o diretor, “Hitchcock”, o filme, é uma brincadeira banal. Mas para os amantes do cinema de Hitchcock, a coisa muda, porque podemos aprender um pouco mais sobre a figura.
Muito do mérito vem de Anthony Hopikins e Helen Mirren, que interpretam o casal protagonista. Elogiar Helen, que sustenta o filme, é chover no molhado. Mas Hopkins, ao contrário, devia um trabalho tão bom quanto sua fama exige desde “O Silêncio dos Inocentes” (que, vejam vocês, também é baseado na história de Ed Gein). Toda a maquiagem que ele usa para encarnar o diretor ainda é pouca para esconder o brilho de sua interpretação. Todo o tom de voz, lentidão de movimentos e mente afiada como uma faca, marcas de Hitchcock, estão ali.
Mas não dá para dizer que o Hitch, enquanto pessoa, chegue a ser humanizado, enquanto personagem. Hitchcock ainda é uma caricatura. Porque, mesmo que ele, digamos, realmente usasse terno e gravata, sempre pretos com camisa branca, até mesmo para cortar grama, vê-lo de terno e gravata cortando grama não contribui para essa humanização – e só falo disso porque parte da pretensão de biografias é a busca por essa humanização. O mesmo não se pode dizer do diretor, praticamente uma outra persona Alfred Hitchcock.
E isso acontece especialmente na relação com suas duas atrizes, Janeth Leigh e Vera Miles, em simpáticas interpretações de Scarlett Johansson e Jessica Biel. Afinal, uma das frases célebres de Hitchcock era que “atores devem ser tratados como gado”. É interessante, partindo desse ponto, notar como ele desenvolve uma relação afetiva com as duas, por vezes paternal, por vezes sensual. O que se transforma em frustração com Vera, que escolheu ser mãe ao invés de se submeter a ele.
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Publicado originalmente no Portal POP.