A sintonia histórica com que House of Cards (2013 – ), a sátira política da Netflix, opera, dedicando esta quarta temporada às eleições, é impressionante. Este é ano eleitoral nos EUA, processo democrático que mais influencia os demais países fora de suas próprias eleições, quando existem. A ficção, porém, não chega a dar conta do absurdo da realidade (como seria possível prever Donald Trump? Bernie Sanders?). A trama mira no que havia de mais certo, usando o relacionamento entre Claire e Frank Underwood (Robin Wright e Kevin Spacey) como metáfora para a ascensão do casal Clinton, sedimentada na campanha de Hillary, no que acerta na mosca.
A terceira temporada termina com uma racha entre o casal Underwood, o que coloca em risco a reeleição de Frank. Elegante, bonita, altiva e simpática sem se deixar vulgarizar, Claire é sua maior arma para quebrar parte da imagem como político típico: branco, de meia idade e com medo de assumir posturas que desagradem parte da população, como ele mesmo nos lembra em uma das memoráveis quebras da quarta parede (quando ele se volta para o espectador). Os primeiros episódios fazem, por isso, um mergulho no melodrama, gênero que ainda não havia aparecido com tanta força e acaba costurando toda a trama.
É a coroação de uma argumentação que vem sendo sustentada desde os primeiros capítulos. A história não é apenas sobre Frank Underwood, mas sobre o casal e sua sede de poder – daí a comparação com os Clinton, cuja trajetória levou ambos à Casa Branca. Mas até então, a frieza e capacidade de coerção e manipulação de Claire vinha na forma de surpresa do roteiro, como quando ela não se preocupa com o marido ter um caso, desde que seja para um bem maior. Por “bem maior”, no contexto de House of Cards, entenda “escalada para o poder”, claro.
Claire sempre foi o sustentáculo central do poder de Frank. Quando ela o deixa pelo antigo namorado fotógrafo, no passado, ele se torna mais vulnerável do que nunca. Ao mesmo tempo, é atacando o casamento do então Presidente Walker (Michel Gill) que ele consegue desestabilizar a imagem pública do casal presidencial, limpando seu caminho para o poder. Daí os problemas que eles enfrentam na terceira temporada, levando à maior fragilidade e desestabilização do personagem de Spacey.
Com Frank no Salão Oval, Claire decide que é hora de sair da sombra do marido, o que é desastroso. Ambos estavam acostumados a operar nos bastidores. Os holofotes que envolvem a Casa Branca são demais para que eles consigam agir da forma como estavam acostumados. O desequilíbrio se torna desacordo e onde havia amor – ainda que uma forma deturpada de amor – nasce o amargor. Daí o melodrama. Claire se torna uma mulher decidida a acabar com Frank. O resultado só pode ser trágico.
Da tragédia, porém, Claire emerge em um novo status. Ela não está mais atrás de Frank, lhe dando apoio e suporte. Os dois caminham lado a lado, incluindo a forma como o roteiro os trata, como nos mostra a cena final do último episódio. A nova dinâmica é perfeita: enquanto um está em cena o outro trabalha nos bastidores e vice versa, recuperando o espírito das duas primeiras temporadas, em que cada revés era transformado em vitória.
Volta a ficar divertido ver House of Cards, já que os jogos de poder dos Underwood fazem a narrativa mais ágil. Mas a queda foi importante. É como a série demonstra o crescimento dos personagens. De agora em diante, transformados pelas provações, eles deverão enfrentar novos desafios, que se acumulam ao longo da temporada. As diversas crises de governo, as eleições, os adversários, problemas pessoais, problemas de saúde e fantasmas do passado se avolumam, tornando a narrativa menos didática e mais realística.
O equilíbrio de gênero da série também foi acontecendo por trás das câmeras. De uma primeira temporada dirigida apenas por homens, para uma quarta dividida mais uniformemente – com a própria Wright comandando boa parte dos episódios, função que vinha assumindo desde a segunda. O discurso é menos o do esterótipo feminista, com superafirmação da mulher, e mais de uma tentativa de equilíbrio que favorece a série.
Difícil pensar em um exemplo melhor do que a reunião entre Claire e Viktor Petrov (Lars Mikkelsen). É uma inversão radical do mesmo encontro acontecido na temporada anterior. A Primeira-Dama agora não se acua diante das investidas do Presidente Russo, que insiste em lhe tratar como um ser inferior por ser mulher. Poucas coisas podem ser tão recompensatórias do que ver uma mulher fazendo esta figura à Putin se dobrar. Ao mesmo tempo, é a cena em que fica claro que ela está pronta para assumir seu lugar ao lado de Frank.
Para marcar esta diferença, entra em cena o casal maravilha, Will e Hannah Conway (Joel Kinnaman e Dominique McElligott), o candidato republicano e a pretendente à Primeira Dama. Eles são o oposto do casal Underwood. Cosmopolitas, jovens, visual de comercial de margarina e com filhos. Mas mesmo que Will se movimente de forma semelhante a Frank – sem os anos de sujeira de terceiros acumuladas para serem usadas em momentos oportunos –, Hannah não é Claire. O que faz toda a diferença do mundo, como fica bem claro na segunda metade da temporada.
As duas primeiras temporadas tinham arcos mais bem desenhados. O começo era da “traição” das eleições até a chegada de Frank à Vice-Presidência. A segunda foi daí para a chegada no Salão Oval. A terceira colocou Frank em uma posição de desconforto e, por isso, foi menos recompensatória, se fechando no começo da campanha das primárias. Esta última avança menos ainda a linha do tempo, mas é fundamental para o que promete ser o desfecho na quinta. Ano que vem saberemos o quão premeditado foi este plano.