Enquanto estava fazendo a pesquisa para preparar sua adaptação de “Anna Karenina”, o grande clássico de Leon Tolstói, o diretor Joe Wright leu, em uma obra de Orlando Figges, que a aristocracia russa do século 19 eram “pessoas vivendo em cima de um palco, onde tudo era encenado”. Daí que – em parte também pelo orçamento limitado – veio a ideia de situar a maior parte do filme em um teatro. E isso fez toda a diferença no modo como somos reapresentados a esse clássico da literatura russa.
Como Wright é um esteta de mão cheia, e quem viu o impecável plano-sequência da praia de “Desejo e Reparação” sabe perfeitamente disso, essa opção estilística passa longe de ser uma mera futilidade. A coisa vai para outro lado: as transições, sequências, encenações espalhafatosas, cenários obviamente artificiais são absolutamente necessários para que o filme funcione. É esse mundo visualmente falso que vai dialogar diretamente com a hipocrisia da sociedade russa do século 19 (mas não se surpreenda se o comentário social lhe parecer estranhamente atual).
Se você não conhece a história, “Anna Karenina” trata da vida da personagem-título, uma aristocrata russa, bem casada com um alto funcionário do governo, interpretados por Jude Law e Keira Knightley – em sua terceira colaboração com Wright. Ela acaba se apaixonando por um militar, papel de Aaron Taylor-Johnson, o que pode significar a ruina de sua vida social, já que a sociedade é extremamente machista. Afinal, um homem separado é um homem comum, mas uma mulher separada é uma párea. Daí a importância de escancarar toda essa falsidade.
Dois aspectos estético-narrativos são bem importantes para que o triângulo amoroso funcione melhor dramaticamente. O primeiro é o contraste entre a relação de Anna e seu marido e ela e seu amante. Em geral, filmes sobre mulheres adúlteras tendem a mostrar o casamento modorrento e a diversão apaixonante com o outro. Mas Wright eleva isso ao patamar de arte, não apenas pelas belas imagens do casal se apaixonando, mas especialmente por conseguir manter todos os personagens perfeitamente tridimensionais. O marido não é demonizado e o amante está longe de ser perfeito. O ponto é que quando o amor bate, há muito pouco a se fazer quanto a isso. Mas, que fique claro: o amor pode ser uma das poucas coisas verdadeiras, mas ele não é solução, nem mesmo redenção. Não aqui.
O outro aspecto envolve as diversas subtramas, focadas, mais notadamente, em dois casais. O irmão de Anna e sua mulher, interpretados por Matthew Macfadyen e Kelly Macdonald, e a antiga pretendente do amante e seu interesse amoroso, Domhnall Gleeson e Alicia Vikander. O primeiro é um casal que se mantém junto, mesmo com a infidelidade dele, enquanto o segundo é jovem e ainda está em processo de aprendizado sobre seus sentimentos. Esses dois casais, colocados lado a lado de Anna e seu amante, acabam potencializando sua humanidade.
Wright cria um filme impressionantemente sutil, considerando o impacto que há com todas as imagens e interpretações, tanto os movimentos quanto a voz (especialmente a valsa), forçadamente caricatas. Além disso, com a limitação de espaço, abusa de transições e de efeitos de encenação e som para marcar as mudanças de ambiente e de tempo. Note, por exemplo, como ele transforma um trem de brinquedo em uma locomotiva real apenas com sonoplastia, ou como ele faz uma repartição pública se tornar uma rua e em seguida um restaurante com um simples movimento de câmera, ou ainda, como ele faz pedaços de papel rasgados jogados ao alto se transformarem em neve.
Todos esses recursos são, afinal, marcas do grande cinema, que usa seu aparato técnico para melhor contar uma história. Neste caso, uma das maiores histórias de todos os tempos.
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Publicado originalmente no Portal POP.