Quando foi publicado, em 1943, “O Pequeno Príncipe” não foi um libelo antiguerra. Ao menos não direta ou intencionalmente, mesmo se baseando nas memórias de Antoine de Saint-Exupéry como piloto na Primeira Guerra Mundial e tendo sido lançado no meio da Segunda. Mas há uma relação profunda, via oposição, entre os sentimentos que o Pequeno Príncipe evoca, aprendendo e ensinando, e o conflito armado. Basta notar a sensação de isolamento que o Aviador — alter-ego do autor na obra e, portanto, um piloto da Primeira Guerra — sentia no deserto antes de o Príncipe lhe devolver a humanidade, o que envolve a conexão com seu lado infantil. Afinal, poucas coisas são tão adultas quanto a guerra.
“O Pequeno Príncipe”, a animação que transpõe o livro para as telas, atualiza o confronto ideológico, deixando a guerra um pouco de lado e substituindo-a pela vida urbana brutal e massacrante, com o dia a dia cinza e quadrado e a rotina ordeira das escolas e escritórios. No centro desse conjunto de engrenagens que é a existência contemporânea, está uma garotinha que quer muito entrar para uma escola de prestígio por insistência de sua mãe. Isso as faz se mudarem para uma casa vizinha à de um velho meio “pancada” que, claro, lhes apresentará à narrativa do Pequeno Príncipe e suas lições sobre amor, amizade e imaginação.
A menina, sem nome, como todos os personagens, está deixando sua infância de lado para viver uma rotina cronometrada de estudos que lhe garantirão a entrada e permanência em uma escola de prestígio. O mundo está perdido, quando até uma criança precisa abrir mão de sua infância para ter de se tornar adulta. Essa é uma das muitas leituras possíveis do romance de Saint-Exupéry, que acaba ganhando destaque e novos contornos na animação.
Nesse sentido, o que salta aos olhos é a articulação entre forma e conteúdo. O mundo adulto das cidades é cinza e quadrado. Literalmente. Da arquitetura ao corte das árvores, tudo é desenhado em ângulos retos. A primeira imagem da cidade, vista de cima, evoca uma placa de circuito, com os carros se movimentando mais ou menos como se espera que a eletricidade passe pelos condutores. Tudo é funcional, organizado e chato. Falta cor e alegria, características intrínsecas ao universo infantil, cuja ausência é sentida o tempo todo.
Os acertos estéticos seguem com o contraste entre o mundo da garotinha e o do velho, que tem aquele padrão semicaricatural das animações em computação gráfica contemporâneas, e a narrativa dentro da narrativa que é a história do Pequeno Príncipe. É aí que o espetáculo visual proposto pelo diretor Mark Osborne aparece. Não se trata de fazer uma transposição rasteira do traço de Saint-Exupéry para o plano das três dimensões. É mais como tentar imaginar o que aconteceria se o autor resolvesse fazer esculturas em vez de desenhos. O resultado é tão impressionante quanto familiar, ao menos para quem passou a vida lendo e relendo edições ilustradas de “O Pequeno Príncipe”.
É possível que essa seja uma adaptação que, em nome da audiência, tenha sacrificado a atemporalidade da obra original, característica mais profunda de “O Pequeno Príncipe”. A crítica ao capitalismo voraz e sem sentido (de que adianta ter todas as estrelas do céu?) é, como disse antes nesse texto, apenas uma das muitas metáforas que a simplicidade existencial do texto de Saint-Exupéry evoca. Mas, para nosso tempo – de crises sociais, econômicas e morais – talvez seja apropriado nos lembrarmos do que é importante de verdade nessa vida. Em outros tempos, quando estivermos nos debatendo com outras questões, talvez seja apenas a hora de uma nova adaptação.
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Publicado originalmente no Portal POP.