Um sucesso literário não passa incólume pelo cinema. Daí a necessidade de se fazer um filme de James Bond, considerando o quanto os livros escritos por Ian Flemming centrados no personagem estavam vendendo na época, já em 1962. Chamaram Sean Connery, galã relativamente desconhecido, com apenas 32 anos e pinta de um Cary Grant britânico. A fórmula deu tão certo que ele reprisou o personagem outras seis vezes.
Na estreia, em “007 Contra o Satânico Dr. No”, já está presente a maior parte dos elementos que tornaram o personagem icônico: a arma, Walter PK; os ternos bem cortados, com a obrigatória cena com gravata borboleta; a sequência de abertura, com o tiro em direção à câmera; os créditos iniciais, meio lisérgicos; o martini com vodca, batido, não mexido; o flerte com a secretária, Srta. Moneypenny (interpretada por Lois Maxwell em todos os filmes estrelados por Connery e Roger Moore); o relacionamento que varia entre o respeito e o escárnio com o chefe, M; as viagens pelo mundo; o vilão caricato; e, como não poderia deixar de ser, as Bond Girls.
O Bond de Connery é um beberrão, fumante, bon vivant, charmoso e mulherengo. O que, claro, define praticamente qualquer Bond, se essa descrição não fosse bem próxima da do próprio ator na época. O Bond dos livros de Fleming não fugia muito disso, mas era mais durão e de moral ambígua, mais próximo do trabalho atual de Daniel Craig. A interpretação de Connery acabou definindo como marca do personagem um certo coração mole que, até pouco tempo atrás, parecia não poder ser desligado da imagem do espião.
Em “Dr. No”, que se passa na Jamaica, onde os livros de Bond foram escritos, inclusive, que vemos a já clássica cena de Ursula Andress saindo do mar em direção à areia de biquini. A cena é tão famosa que foi repetida à exaustão, inclusive pela própria Ursula em “Cassino Royale”, não a versão recente, de Daniel Craig, mas a versão paródia, com Woody Allen e Orson Welles, entre outros. Andress também inaugura uma outra tradição, a das Bond Girls com nomes engraçados. Ela se chamava Honey Ryder (algo como ‘cavaleira docinho’), mas Connery ainda iria conhecer Sylvia Trench (Sylvia Trincheira), Kissy (Beijável), Plenty O’Toole (Cheia de Ferramentas), além da inesquecível Pussy Galore, quem nem dá para traduzir porque este é um site-família.
Ainda que o primeiro filme tenha a maior parte das coisas que torna James Bond um ícone facilmente reconhecível, foi ao longo dos seguintes que a mítica foi se ampliando. Por exemplo, a organização criminosa SPECTRE (Special Executive for Counter-intelligence, Terrorism, Revenge and Extortion) é apenas mencionada no primeiro filme, com o Dr. No insinuando que fazia parte dela. Mas nos seguintes vamos compreendendo melhor como ela funciona e seus operativos. Já no segundo, “Moscow Contra 007”, aparecem os números 1, 3 e 5 da SPECTRE. E o Número 1 surge como apenas uma mão acariciando um gato branco (imagem que também foi imitada inúmeras vezes). Esse personagem, em “Com 007 Só Se Vive Duas Vezes”, é revelado como sendo Ernst Stavro Blofeld, o careca com cicatriz no olho que anos depois inspiraria o Dr. Evil de “Austin Powers”.
Além da SPECTRE, que tem a função de ligar os filmes, já que Bond de Connery deixa de enfrentar a organização apenas em “007 Contra Goldfinger”, outros elementos vão aparecendo aos poucos. Q, o mestre das traquitanas tecnológicas, surge em “Moscow Contra 007”, mas discretamente: com uma maleta (a famosa pasta 007) que tinha uma faca escondida, além de explodir se não fosse aberta corretamente. Já o carro de Bond, o Aston Martin DB5, aparece como novidade em “Goldfinger”, que também traz o primeiro dos grandes “ajudantes de vilão”. Neste caso, é o chinês mudo Oddjob (trabalho estranho, em tradução literal), que era capaz de arremessar o chapéu munido de uma aba cortante.
Há uma peculiaridade na “era Connery” que ainda não se repetiu com outro ator. Ele deixou o personagem e voltou a interpretá-lo. Duas vezes (ainda que uma seja não intencional). Em “007 A Serviço Secreto de Sua Majestade”, o espião interpretado por George Lazenby vai muito na esteira do que havia sido definido por Connery. Mas Lazenby era muito magrelo e tinha uma cara aparvalhada demais para o personagem, tornando-o mais próximo de “O Agente 86”, do que de 007.
A presença de Lazenby, porém, acabou trazendo uma brincadeira interessante entre os fãs: James Bond seria um cargo, não um personagem, e cada ator vive, na verdade, um espião diferente que assume o manto. Isso é reforçado pela primeira fala de Lazenby, “isso nunca aconteceu com o outro cara.” Claro que os roteiros foram construídos para dar a impressão de que é o mesmo personagem. Inclusive a “era Roger Moore” começa com uma pequena desavença com o citado Blofeld, por conta dos eventos da “era Connery”. Mas isso é assunto para o próximo texto.
Connery volta em “007 – Os Diamantes São Eternos”, e já na primeira cena ele está buscando vingança pelo que aconteceu no final de “007 A Serviço Secreto de Sua Magestade”, que é uma afirmação de continuidade. “Os Diamantes São Eternos” é, de longe, o melhor filme de Connery no papel, e, logo, o que envelheceu melhor. Com edição mais ágil e melhores cenas de ação, fruto de um orçamento mais inchado. Era para ser o canto do cisne de Connery, que encerraria sua participação como o espião britânico.
Seria, claro, se ele, em 83, em plena “era Moore”, não resolvesse voltar ao papel para “007 – Nunca Mais Outra Vez”. O próprio nome já é uma piada com o fato de Connery ter dito que não voltaria ao papel, mas acabou voltando duas vezes. O filme é estranho, começando direto com uma cena de ação, sem a clássica caminhada da direita para esquerda e o tiro na tela e, o horror, sem os créditos de abertura. A trama está mais para os clássicos oitentistas, com “o melhor naquilo que faz” já meio aposentado tendo que voltar à ativa para a famosa “uma última missão”, do que para um filme de Bond. O longa também não é considerado cânone, não entrando na contagem final dos 23 filmes existentes.
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Publicado originalmente em 22 de outubro de 2012 no Portal POP.