A urgência de “O Expresso do Amanhã”

Tivesse estreado no Brasil à época de seu lançamento original, “O Expresso do Amanhã” iria encontrar um povo que começava a se manifestar contra os desmandos do governo, cujo misto de incompetência e mau caratismo seguiam (e seguem) sendo descontados na população. Dois anos depois, o filme encontra um país dividido. Todos desiludidos, exigindo mudanças, em uma disputa ideológica que, por ser seletiva em relação aos temas que levam à revolta, parece mais e mais implicar em um conflito de classes antes de qualquer coisa. O que faz essa história ainda mais urgente e precisa.

Bong Joon-ho, em sua primeira produção ocidental, não fez muita questão de esconder as metáforas políticas de seu filme. Logo fica claro, nesse cenário pós-apocalíptico de congelamento global: o trem que segue à toda velocidade está lá para representar o conflito de classes, que mais e mais se aprofunda mundo afora. Quem está no vagão de trás são os pobres, que puderam entrar no trem pela benevolência de Wilford (Ed Harris), o bilionário que colocou os ricos e poderosos nos vagões da frente.

O que salta aos olhos ao longo do filme é o contraste, tão radical quanto brutal, entre as condições dos vagões de trás em relação aos da frente. A sujeira, a falta de espaço e luz natural e a ração quase impossível de comer, não fosse a fome, se tornam exponencialmente mais insuportáveis quando comparadas ao luxo hedonista dos que estão na frente, dispondo de piscinas, saunas e boates. A brutalidade dessa discrepância é sublinhada ainda mais quando Joon-ho usa a mesma trilha e estilo de filmagem nas sequências de batalha e cenas em que os revoltados caminham pelos vagões dos bem afortunados.

Mas, cada segundo de filme, cada linha de diálogo, implicam no aprofundamento dessa questão. Exemplo maior disso é Mason (Tilda Swinton), personagem que faz as vezes de porta-voz de Wilford, exibindo uma profunda devoção, tanto ao seu mestre quanto à máquina que ele criou, que já começa a ganhar ares divinos. Seu argumento é o do conformismo, diz que eles devem se contentar com a situação em que se encontram há quase uma década por sempre ter sido assim. Não deve mudar, pois ela acredita que o trem funciona como um ecossistema, subsistindo através de uma relação simbiótica entre os habitantes de cada vagão. “Um sapato não deve ser usado na cabeça”, chega a afirmar.

Outros artifícios são menos explícitos, como o kronol, a droga gerada pelo próprio funcionamento da máquina que é, ao mesmo tempo, incendiária e alucinógena, ou seja: é o próprio sistema que dá a possibilidade do escape. Ou ainda como Joon-ho brinca com as personas dos atores para gerar outras relações de sentido e reforçar seus papéis na trama, começando pelo próprio Chris Evans, na pele de Curtis, o líder da revolução. Mesmo em 2013, sua imagem já estava bastante solidificada como o Capitão América, bastião da liberdade americana nos filmes da Marvel.

Mais ainda as presenças de Harris como Wilford e John Hurt como Gilliam, o mentor da revolução. O primeiro viveu o icônico papel do diretor em “Show de Truman”, sendo o responsável pela realidade do personagem central para o prazer de todas as pessoas dos EUA. Já o segundo é Winston Smith, de “1984”, o homem que resolve se revoltar contra as políticas do Grande Irmão (nome reapropriado para o mais popular reality show, aos moldes do “Show de Truman”). Assim como nesses outros dois filmes, “O Expresso do Amanhã” reforça a impossibilidade de um consenso entre oprimidos e opressores.

O filme talvez seja apocalíptico demais, carregando nas tintas para reforçar sua mensagem. Mas isso não quer dizer que não haja uma certa precisão na crítica que constrói; daí, talvez, o bom timing de estreia no Brasil, esse caldeirão sócio-político em ebulição. Não vai mudar a cabeça de ninguém, claro. Mas, talvez, ajude a lembrar que os opressores seguem tranquilos enquanto assistem aos oprimidos disputarem migalhas entre si. A esperança, por fim, está na possibilidade de um mundo menos maniqueísta para as próximas gerações, sendo esse o único lampejo de otimismo a que Joon-ho se permite ao final de “O Expresso do Amanhã”.

Publicado originalmente no Portal POP27.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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