Aardman brilha com “Shaun, o Carneiro”

A rotina massacrante do dia a dia leva Shaun, o simpático e engenhoso carneirinho, a uma decisão radical: dar um golpe no fazendeiro para curtir um dia de folga. Mas é claro que as coisas não saem como o esperado e ele vai precisar usar de toda a sua astúcia para conseguir salvar o dia. Há toda uma afiliação em tramas de comédias leves com esse tom, desde “A Felicidade Não Se Compra” até “Esqueceram de Mim”, passando por “Curtindo a Vida Adoidado”. Um misto da consciência de que a vida é massacrante, com o velho adágio do “cuidado com o que desejas”. Mas a estrutura e a mensagem edificante ficam em segundo plano ante a ambição da Aardman de fazer um filme (praticamente) mudo.

A Aardman, estúdio de animação especializado em stop-motion, vem progressivamente aumentando sua habilidade em lidar com a narrativa cinematográfica. Trabalhos como “Fuga das Galinhas”, “Wallace e Gromit” e “Piratas Pirados” são algumas das melhores e mais engraçadas animações dos últimos anos. O que culmina em “Shaun, o Carneiro” e sua preocupação em se ater às imagens para contar a história.

Para ser justo, a série televisiva já seguia essa fórmula e o filme – e essa é uma de suas muitas qualidades – é um episódio televisivo hiper-elaborado. Mas sustentar por quase uma hora e meia uma narrativa sem nenhuma linha de diálogo é um esforço de outra ordem. A Pixar, notória por sua criatividade e habilidade narrativa, quando tentou isso só chegou aos 40 minutos iniciais de “Wall.E”, para se ter uma ideia.

A opção por manter a simplicidade elegante do cinema mudo para o filme guarda uma relação profunda com o próprio personagem central, o simpático Shaun. A série surgiu de uma pequena, mas eficiente, inversão de papéis: o carneirinho não se deixa levar pelo grupo, contrariando o clichê do rebanho. “Shaun”, o filme, e Shaun, o personagem, nadam contra a corrente, pois.

Ao mesmo tempo, o filme ainda toma a lógica da série para seguir em frente. Na abertura dos episódios, acompanhamos o começo de um dia da fazenda, ficando claro, ao final, como Shaun comanda um universo paralelo de atividades junto aos demais carneiros. A sequência inicial do longa vai pelo mesmo caminho, mas apostando na repetição de vários dias até que nosso héroi chegue ao limite do tédio, o que o faz elaborar e pôr em prática o plano de tirar o fazendeiro e o cão pastor de cena para curtirem um dia mais tranquilo.

A trama é a desculpa necessária para fazer Shaun ir parar na cidade grande, onde logo precisa proteger sua família de carneiros (eles não conseguem ficar sozinhos sem um líder por muito tempo) e encontrar o fazendeiro, que perdeu a memória, e o cão. Lá ele vai ainda ter que escapar das garras de um funcionário do departamento de zoonoses que leva seu trabalho meio a sério demais.

Se, até esse ponto, não tinha ficado claro que toda a mensagem de “Shaun, o Carneiro” era sobre pensamento independente (e arcar com as consequências disso), os diretores e roteiristas, Mark Burton e Richard Starzak, fazem questão de sublinhar e reforçar. Na história, antes de ser resgatado, o fazendeiro acaba usando suas habilidades com a tosa de carneiro para dar um novo visual para uma celebridade. Uma foto nas redes socais e logo toda a cidade quer um corte de cabelo igual, entrando em conformidade com o rebanho humano.

É a forma que eles encontraram de deixar tudo bem explicadinho. Assim, nenhum adulto que vá ver o filme acompanhando crianças tem desculpa para perder o fio da meada.

Publicado originalmente no Portal POP.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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