Atômica

Atômica

Atômica (Atomic Blonde, 2017) não é o filme que pensa que é. Tampouco é o filme que quer ser. O patamar que estabeleceu para si próprio é alto demais para ser bem sucedido. A seriedade com que encara o tema remete a O Espião que Sabia de Mais (Tinker, Tailor, Soldier, Spy, 2011), de Tomas Alfredson, o melhor filme de espionagem recente; sua estética, um pop-neon oitentista, deve tudo a Driver (2012), de Nicolas Winding Refn; e, se isso já não for o bastante, chega a citar nominalmente Stalker (1979), de Andrei Tarkovski, com uma sequência de luta iluminada pela tela de cinema que exibe a obra do mestre soviético. Não ser tão bom quanto estes outros trabalhos, porém, não torna Atômica descartável.

Apesar do tom sério e do contexto histórico envolvendo a possibilidade de um conflito entre EUA e URSS durante os dias finais do muro de Berlim, em 1989, Atômica é, curiosamente, um filme pouco interessado em política. Importa mais o jogo de gato e rato envolvendo espiões de diferentes agências do que qualquer comentário sobre comunismo, capitalismo ou clima de paranoia da época – que, inclusive, encontra forte ressonância contemporânea. Atômica é menos sobre o contexto social da espionagem e mais um filme que usa no cinema de espionagem, sua estética e clichês, para se sustentar. A chave para entender o truque operado está em outro lugar: na protagonista.

Ao usar as bases narrativas do cinema de espionagem e, ao mesmo tempo, abraçar a estética neon dos anos 80, reatualizada para parecer mais elegante do que foi de fato, Atômica cria distrações suficientes para permitir que a Lorraine Broughton de Charlize Theron brilhe. O resultado é uma operação radical, em certo sentido. É mais delicado e ao mesmo tempo potente do que simplesmente fazer um “James Bond de Saias”. Lorraine não é uma inversão de gênero tópica: ela é uma mulher que por acaso é uma espiã. E toda a imponente presença da personagem diante da câmera, que passa tanto por sua sensualidade quanto por sua habilidade de causar dano físico em combate, é usada para provar este ponto.

Essa é a grande contribuição de David Leitch ao gênero. Dublê alçado a diretor – estreou não-creditado em De Volta ao Jogo (John Wick, 2014) –, sua preocupação é com a fisicalidade de Lorraine. Já na primeira aparição da personagem é revelado o resultado de todos os combates pelos quais ela sobreviveu – o filme é um longo flashback. É uma coleção de hematomas e machucados como pouco se vê no cinema. Especialmente em mulheres. A cena mostra a preparação, tanto física quanto psicológica (esta mérito de Theron), de Lorraine para enfrentar uma longa reunião que irá passar sua última missão a limpo. Está dado o cenário que irá envolver as duas grandes cenas de ação: a já mencionada no cinema e o longo e impressionante plano-sequência no clímax do filme.

No vídeo-ensaio Jackie Chan – How to Do Action Comedy o crítico Tony Zhou compara cenas de ação chinesas estreladas por Jackie Chan com cenas de ação americanas usando o primeiro Guardiões da Galáxia (Guardians of the Galaxy, 2014) como exemplo. Seu argumento é que os diretores de Hollywood, na tentativa de esconder que seus atores não sabem lutar sem precisar de uma coreografia muito detalhada, editam a cena usando o impacto dos golpes para separar os planos. Vemos a preparação do soco; corte; soco; corte; braço voltando ou rosto se contraindo, o que reduz a sensação de impacto e dano para o espectador. No cinema chinês de kung-fu, como os atores sabem lutar e se posicionar, o diretor pode simplesmente deixar a câmera rodando e apreender todo o balé dos corpos enquanto sentimos cada impacto como se fosse em nossos próprios corpos.

Leitch, dublê e coreógrafo antes de sentar na cadeira de diretor, sabe exatamente como unir estes dois universos. Theron não luta como Jackie Chan e não precisa. Atômica sustenta a câmera permitindo que o impacto dos golpes, sublinhado pela sonoplastia, seja sentido pelo público. O efeito estético é impressionante na medida em que as cenas ganham uma visceralidade muito mais próxima de filmes como Operação Invasão (The Raid: Redemption, 2011) e sua continuação – talvez os filmes com as melhores cenas de luta de todos os tempos –, mas ao mesmo tempo possibilitam um reforço discursivo poderoso à narrativa de Lorraine, uma heroína feminista.

Em diversos momentos fica claro que a personagem de Theron é muito melhor do que os homens à sua volta, tanto física quanto intelectualmente, mas ainda assim segue subestimada. Toby Jones, baixinho e feioso, faz questão de usar a palavra “superior” para descrever sua relação com Lorraine; enquanto James McAvoy, no chão, aos pés dela, grita buscando uma afirmação que simplesmente não existe. Ambos, assim como outros tantos ao longo de Atômica, são inferiores à agente e se aproveitam da ideologia tipicamente masculina que confunde privilégio com mérito só para se verem humilhados diante de uma arma tão eficiente quanto a sexualidade ou habilidade de combate de Lorraine.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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