Bata Antes de Entrar

Bata Antes de Entrar

Uma matéria do Blog do Guia da Folha de S. Paulo informou que muitas pessoas deixaram as salas de cinema no meio de uma sessão de Bata Antes de Entrar (Knock Knock, 2015), filme estrelado por Keanu Reeves e dirigido por Eli Roth. Esta é uma informação curiosa, considerando a alta tolerância do público brasileiro para cinema considerado de baixa qualidade. Ninguém abandona uma sessão de Transformers ou de De Pernas Para o Ar. A última notícia de abandono de sessão envolveu Praia do Futuro e uma cena de sexo gay com Wagner Moura, ícone de masculinidade por conta de seu Capitão Nascimento nos dois Tropa de Elite.

O que, afinal, poderia ter causado tanta indignação assim? Diante do filme, algumas hipóteses que podem ser testadas: 1) a atuação canhestra de Reeves finalmente chegou a níveis insuportáveis para a sensibilidade humana; 2) Roth, um notório sádico, conseguiu mostrar mais vísceras e desmembramentos do que já aparecia em O Albergue ou Canibais, filmes que obrigaram o mundo a lidar com a expressão torture porn; 3) mais sutil, envolve a inversão de gênero, já que as maníacas são duas jovens de rosto angelical e a vítima é um homem adulto, um ataque direto ao machismo institucional brasileiro.

Depois de ver o filme, fica mais ou menos claro que a resposta está no item 3, com pitadas dos dois outros. A atuação de Reeves é terrível e chega a incomodar, mas boa parte do desconforto vem de como Roth cria uma atmosfera de tortura psicológica e social em Bata Antes de Entrar. E, para isso, ele abusa da inversão de gênero, com duas atrizes que conseguem criar personagens tão irritantes quanto aterrorizantes.

A forma como Bata Antes de Entrar é construído é determinante para a criação desta atmosfera. Roth passeia sua câmera com calma por Los Angeles e dali para seus arredores, os subúrbios com casas bem decoradas de famílias que estão em excelente posição social. Corta para o interior do lar dos Webber, recheado de fotos da família. Absolutamente adorável. Só então entramos no quarto do casal, onde preguiçosamente se beijam, ação que deveria levar a um ato sexual, não fossem interrompidos pelas crianças com um bolo de dia dos pais.

Essa sequência é didática por uma série de motivos. Evan, o personagem de Reeves, é inserido em um contexto marcadamente familiar. Nada desabona isso. Ele é um pai carinhoso e um marido compreensivo que, apesar de se sentir frustrado, entende que a falta de sexo no relacionamento é pelo estresse no trabalho de Karen, sua esposa vivida por Ignacia Allamand. O preâmbulo chega ao fim quando a mulher e os filhos viajam e Evan fica para trás para terminar um trabalho importante. Quando Genesis e Bel, papéis de Lorenza Izzo e Ana de Armas, aparecem, o filme começa de fato.

No começo elas são apenas jovens perdidas em uma noite chuvosa. Logo começa um jogo de sedução que se traduz na tensão narrativa orquestrada por Roth. Elas se jogam para cima dele, elogiam sua aparência, apelando para sua vaidade, e, talvez mais importante, para seu profundo medo de envelhecer – simbolizado pelo seu cabelo e sua coleção de discos da época em que atacava de DJ. Ele diz “não” diversas vezes e mais uma vez. Até que finalmente diz sim.

É quando a verdadeira tortura começa, com as jovens se recusando a sair da casa de Evan, que teme pela chegada da esposa e filhos. A tortura não é física, com apenas uma única gota de sangue sendo tirada dele. É social, com Genesis e Bel violando a casa, templo familiar (daí a importância das lentas tomadas iniciais), e suas memórias. O personagem fica impotente tanto pelo ombro machucado quanto pelas ameaças de denúncia de estupro e pedofilia, que arruinariam sua vida.

Este é o ponto em que a hipótese três se mistura com elementos da dois. Roth deixa de beber do manual dos filmes apelativos e sanguinários dos anos 70 e 80, migrando suas referências para a elegância brutal de Violência Gratuita, de Michael Haneke (mas sem conseguir chegar tão longe, claro). Os torturados somos nós, homens, que assistimos à Bata Antes de Entrar, pensando que dificilmente resistiríamos aos avanços das duas exuberantes jovens.

Torturar Evan é torturar o nosso machismo diário que não consegue culpar o personagem por ter feito algo de errado. É a inversão total da lógica do horror, que sempre professou um puritanismo implacável, com a sobrevivência das moças virgens e a punição com morte violenta para as mulheres que pecaram. Naturalizamos esse discurso, mas a inversão nos faz levantar do cinema. Chegamos ao ponto de inverter Narciso, achando feio tudo o que é espelho.

Sobre o autor Veja todos os posts

Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *