Dois Caras Legais

Dois Caras Legais

A sequência de abertura de Dois Caras Legais (The Nice Guys, 2016) deixa clara quais as temáticas que interessam Shane Black, diretor e co-roteirista ao lado de Anthony Bagarozzi. Um garoto pega uma edição da Playboy debaixo da cama dos pais que estão dormindo. Ao andar pela casa escapa por pouco de um carro que atravessa as paredes rumo ao quintal. Lá, agonizante e nua, está a modelo que estampa a capa da revista, ao lado do carro capotado prestes a pegar fogo. A cena colide inocência infantil, sexo e violência, a combinação de ouro do cinema hollywoodiano desde sempre.

Dois Caras Legais é, portanto, um filme sobre cinema. Não por acaso o McGuffin (nome que Alfred Hitchcock dava para o artifício de roteiro que faz a trama andar) é, primeiro, uma atriz e, depois, um rolo de filme. Em parte é o que justifica o retorno de Black ao gênero que o consagrou: o thriller policial. Não chega a ser uma grande subversão do estilo, mas sim uma assimilação, radical até, de muitas de suas diferentes vertentes.

Um olhar superficial pode indicar que Black está meramente repetindo suas fórmulas consagradas. Ele é um especialista em colocar uma dupla disfuncional em um thriller de ação, como em Máquina Mortífera (Lethal Weapon, 1987, 1989, 1992 e 1998), O Último Boy Scout (The Last Boy Scout, 1991) e Beijos e Tiros (Kiss Kiss Bang Bang, 2005). Mesmo o contrapeso com o elemento infantil pode ser traçado em trabalhos como Deu a Louca Nos Monstros (Monster Squad, 1987), O Último Grande Herói (The Last Action Hero, 1993) e Homem de Ferro 3 (Iron Man 3, 2013) – lembra da criança que ajuda Tony Stark (Robert Downey Jr.)? Mas Dois Caras Legais vai muito além do simples formulaico repaginado.

Parte da dinâmica entre os dois atores pode até vir do esquema buddy cop dos anos 80, com algumas cenas remetendo diretamente à química entre Riggs e Murtaugh de Mel Gibson e Danny Glover nos Máquina Mortífera. Mas cada um dos dois é herdeiro de um arquétipo específico do Film Noir. Holland March (Ryan Gosling) é o detetive niilista e desiludido que só quer cheques assinados e casos fáceis. Jackson Healy (Russell Crowe) é o brutamontes de coração mole – que o ator já havia interpretado em Los Angeles: Cidade Proibida (L.A. Confidential, 1997). Tudo temperado com o clima e trilha sonora da Blaxpoitation dos anos 70 (ainda que abra brecha para que se critique uma notória maioria de atores brancos, especialmente entre os protagonistas).

Toda essa salada de referências não é apenas uma reafirmação superficial do thriller policial que Dois Caras Legais se inscreve: é uma reafirmação do comentário sobre cinema que Black faz. Na condição de McGuffin o cinema tem o poder de mudar a sociedade, por isso gera tanta preocupação para os vilões. O filme em questão é um pornô cheio de mensagens críticas que podem desestabilizar políticos corruptos e empresas corruptoras – “um pornô em que o importante é a história”, diz o personagem de Gosling tentando entender o que está acontecendo.

Dizer que o cinema é um elemento transformador da sociedade é importante, mas Black vai ainda além. Assim como na cena de abertura, a colisão entre violência, sexo e inocência também é trabalhada no contexto dafilha criança que Holland tenta manter afastada de seu universo de crimes e traições sem sucesso. Assim Dois Caras Legais faz uma reflexão, urgente e necessária, sobre o que é o cinema, afinal de contas? Vemos filmes pelas explosões, tiros e nudez gratuita, ou pelas relações humanas que diretores habilidosos tentam retratar através de suas lentes?

O cinema possui um potencial transformador desde que lhe seja permitido operar nesse sentido. O choque do sexo e da violência só deveria ser válido enquanto comentário social. Dois Caras Legais é, enfim, um filme que usa a violência estilizada e o sexo, com a beleza e exposição dos corpos do elenco, como isca para atrair o público e assim dizer justamente que nada disso importa de verdade.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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