Em “Django Livre” Tarantino faz mais do que homenagear faroestes

Quentin Tarantino, no final catártico de “Bastardos Inglórios”, fez uma declaração aberta. Ele acredita que o cinema é uma ferramenta poderosa, capaz de mudar o estado das coisas. Em “Django Livre” ele leva essa tese a um limite ainda inédito em sua carreira. Mais do que fazer a homenagem fetichista aos filmes de faroeste, Tarantino quer, aqui, dar uma oportunidade simbólica de revanche para os negros escravizados pelos EUA no século 19. E isso não é pouca coisa.

O Django do título, interpretado por Jamie Foxx, é um escravo que acaba sendo libertado por um caçador de recompensas alemão chamado Dr. King Schultz, papel de Christoph Waltz, repetindo a parceria com Tarantino. Django logo cai nas graças de Schultz, que acaba não apenas lhe ensinando seu ofício – “matar brancos e ainda ganhar por isso” – mas também o ajudando na missão de sua vida: resgatar sua esposa, Brunhilde, interpretada por Kerry Washington, que está nas mãos do Monseiur Calvin Candie, defendido muito bem por Leonardo DiCaprio.

Assim, Tarantino transforma Django em um herói romântico, que está em busca do amor da sua vida. Mas, além disso, ele é a encarnação de todo negro que foi chicoteado, humilhado, separado de sua família e obrigado a trabalhar. Por isso Django, para Tarantino, é mais do que um personagem, mas um meio para a trama. Não é por acaso que Django muda sua personalidade à medida que isso é interessante ou necessário para a narrativa. Ele ora é um analfabeto inocente, ora um “selvagem” curioso e de bom coração e ora um estrategista afiado, com todos os passos pensados cuidadosamente.

Se essa variação deixa Django um bocado mais incostante, ela não apenas valoriza o filme, como também os outros personagens. Com destaque óbvio para Waltz, que claramente se diverte horrores em cena (e nos diverte muito mais no processo) e DiCaprio, que finalmente acerta um sotaque. Mas sobra espaço para que Samuel L. Jackson interprete o pior negro da história do cinema (palavras dele próprio, antes que o bonde do politicamente correto venha me dar uma prensa).

Mas “Django Livre” é, acima de tudo, um filme de Quentin Tarantino. Então, além da catarse e do comentário histórico-social, vemos todo um mundo de referências cinematográficas, típicas dos filmes do diretor. A começar pelo próprio “Django”, de 1966, estrelado por Franco Nero. Deste ele toma emprestado mais do que o nome do personagem, mas a trilha icônica, a fotografia, os planos e as letras vermelhas da abertura. E colocar essas referências no início indica algo também: “Django” é um ponto de partida, não um lugar a ser alcançado. Por isso as referências visuais vão de “Trinity” a “Ran”, adaptação de Shakespeare feita por Akira Kurosawa, tudo com uma trilha que vai de Beethoven a Tupac, como é comum nos trabalhos de Tarantino.

Há uma maturidade narrativa inegável em relação a “Django Livre”. Tarantino aprendeu o valor de deixar que parte do que acontece em cena seja apenas sugerido ao espectador. Usando isso, ele escolhe cuidadosamente quem veremos sofrer de sua tão famosa e tão falada violência. Sendo mais claro: vemos a cabeça de inúmeros brancos sendo explodidas ao longo dos filmes, mas ele se recusa a mostrar a pele negra sendo cortada pelos chicotes. O que vemos é o resultado dessa violência, nos gritos, lágrimas, expressões de dor e cicatrizes.

Em “Django Livre”, afinal, não há ferimento que não deixe cicatriz. Esse é o modo de Tarantino dizer que, por mais que ele use o cinema para dar uma merecida vingança aos negros, há marcas que jamais serão apagadas de nossa história.

Publicado originalmente no Portal POP.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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