Padilha e Moura se reúnem em “Narcos”

Antes de qualquer imagem, há um aviso sobre como os eventos mostrados em “Narcos” são inspirados em fatos reais e que qualquer situação que se pareça com a realidade deve ser tratada como coincidência. O anúncio, dúbio por sua própria natureza, que será repetido no começo de todos os dez episódios, é logo seguido por uma explicação sobre o Realismo Mágico, estilo literário colombiano por excelência, que ficou notório pelos livros de Gabriel García Márquez. A ideia é que elementos fantásticos apareçam na trama quando a realidade já não mais der conta. A explicação não está ali por acaso. Muito da história da ascensão e queda de Pablo Escobar (Wagner Moura) é bizarro demais para que um simples olhar objetivo para os fatos consiga contar.

José Padilha, diretor dos dois primeiros episódios e produtor-executivo da série, expande o conceito do Realismo Mágico para várias vertentes da trama. Não há, aqui, confronto entre realidade e ficção. É o abraço do que é potencialmente surreal: o sonho arrogante de Escobar de entrar para a política, mesmo sendo o maior traficante de drogas do mundo; sua fé de que poderia fazer algo para melhorar a Colômbia, mesmo que seu método para lidar com inimigos seja a violência absurda; ou ainda a ilusão americana da ameaça comunista, que ora ajuda, ora atrapalha a guerra contra o tráfico.

Forma e conteúdo dialogam em “Narcos”. A realidade e a fantasia são demonstradas visualmente com o forte contraste das cores que preenchem os ambientes. O mais impactante, um massacre que já aparece no primeiro episódio e vai sendo retomado ao longo da temporada, mostra assassinos e prostitutas se divertindo em um bar com uma intensa luz vermelha, enquanto os policiais chegam da rua, debaixo de uma atmosfera azul. É o real que começa a invadir a fantasia. Da mesma forma, imagens de arquivo das pessoas reais são mostradas o tempo todo. Padilha faz questão de fazer o real invadir sua narrativa ficcional o tempo todo.

A paranoia americana, justificativa das guerras que costumam vir a calhar em épocas de descrença política e crise econômica, é um dos alvos centrais de Padilha com “Narcos”. Nos anos 80, na Era Reagan (ator que conquistava seus papéis de Hollywood denunciando seus colegas melhor cotados como comunistas), o grande inimigo era a União Soviética. Na cabeça do governo, os vermelhos batiam à porta por estarem estabelecidos em Cuba e fomentando guerrilhas na América Latina. Coisa inaceitável. As drogas, questão real e palpável, ficavam em segundo plano.

Padilha coloca no centro da trama Steve Murphy (Boyd Holbrook), detetive do departamento de combate às drogas, que vai para a Colômbia para tentar desmantelar o Cartel de Medellín, ainda em formação nos primeiros episódios. É dele a voz que narra toda a história, recurso que o diretor já havia usado nos dois “Tropa de Elite”. O que começa com um clichê logo mostra seu potencial dramático. O cinismo, forma que todos os policiais encontraram para lidar com a dureza daquela realidade, está tanto na voz do agente como nas atitudes de seu parceiro, Javier Peña (Pedro Pascal), americano de ascendência latina.

A escalação de Holbrook pode ter sido um erro. Ou, talvez, o destaque dado a ele na trama. Já é possível questionar se, em 2015, uma série só terá sucesso com um branco e loiro de olhos claros servindo como ponto de vista. A melhor escolha, logo fica claro, é a de Horatio Carrillo (Maurice Compte), policial colombiano líder do time que vai atrás de Escobar e seus parceiros do Cartel de Medellín. Seja para agradar ao público americano médio, seja pelo medo de se repetir demais, Padilha coloca Carrillo em segundo plano, mas sabe que ele tem potencial. Não por acaso, lhe dá uma grande cena, no quinto episódio, “Haverá Futuro”, em que ele liga para Escobar e deixa claro que, mesmo com bem menos recursos, está em pé de igualdade, fazendo o mesmo discurso para o traficante que este mesmo faz para militares logo em sua primeira aparição.

Há, também, a possibilidade de que a exigência de um ator branco tenha sido usada por Padilha para que ele garantisse Moura como Escobar. Um brasileiro fazendo sotaque colombiano é arriscado para o mercado latino e, como a Netflix não divulga seus números de audiência, talvez nunca saibamos se esse temor se confirmou. Mas, tirando a entonação do castelhano, o brasileiro entrega mais uma de suas grandes atuações na pele (e barriga) de Pablo Escobar, construção que resulta em um dos maiores vilões da dramaturgia recente. E, diferente dos Walter Whites que encontramos nas séries, a humanização do personagem, seus conflitos e anseios, não passa por uma glamurização. Pelo contrário.

A imagem que Escobar faz de si mesmo pode até ser glamurizada e ele pode até conseguir que seus seguidores o vejam dessa forma, como o Robin Hood paisa, ou como uma espécie de Jesus Cristo. Mas a realidade dura cai sobre ele: é um bandido e nada mais. E sua resposta, talvez ainda mais incrível, está em dobrar a realidade à sua vontade. Isso acontece mais na segunda metade da temporada (curiosamente, é quando parte do ritmo e da força dramática se perdem), quando ele financia diretamente o terrorismo ou se deixa prender construindo sua própria prisão, o que, de fato, resolve parte dos problemas de violência da Colômbia. Quer coisa mais Realismo Mágico do que isso?

Publicado originalmente no Portal POP.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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