Nasce Uma (nova) Estrela

Quarta versão da história clássica coloca Lady Gaga e Bradley Cooper como casal ligado pela música

A cada intervalo de mais ou menos duas décadas o mundo é agraciado com uma nova versão de Nasce Uma Estrela (A Star is Born), todas apreendendo parte do espírito do tempo a seu modo particular. A original, de 37, com Janet Gaynor, era sobre uma jovem do interior que aspirava fama e fortuna em Hollywood. Em 54 era Judy Garland quem assumia o papel usando musicais como metacomentário, fazendo a transição temática do cinema para a música que se solidificou no filme de 76, com Barbra Streisand. Se a década de 90 não teve sua versão – é possível argumentar em favor de Showgirls (1995), de Paul Verhoeven, porém –, em 2018 Bradley Cooper nos mostra sua visão para essa história.

Em Nasce Uma Estrela, que chega aos cinemas brasileiros esta semana, Lady Gaga é Ally, a estrela que irá nascer. Ela é dona de um talento tão natural quanto puro, impossível de ser ignorado por alguém como Jackson Maine, vivido por Cooper, um músico alcoólatra e viciado em drogas que aos poucos perde sua audição. O amor romântico nasce da relação que ambos possuem com a música. A capacidade de criar coisas belas é o motor que une as duas almas e a beleza deste filme está em como a câmera de Cooper, também diretor e co-roteirista, consegue captar essa conexão.

Dois elementos unem todas as quatro versões. A primeira é o enredo que serve como fundação. Um artista homem, um pouco mais velho, cujo abuso de químicos começa a afetar sua carreira, descobre uma jovem que possui o que ele um dia teve. Algo ainda mais raro que talento, como Maine nos lembra em um discurso para Ally: a combinação perfeita entre ter algo a dizer e a capacidade técnica e formal para veicular isso. Shallow, a canção que provavelmente levará a estatueta do Oscar em 2019, trata disto. A segunda é a cena da despedida, em que o homem a chama de volta e diz que “só queria olhar novamente para você”.

Essa cena, icônica em cada filme, agora mostra que Cooper entendeu algo que estava apenas sugerido nas outras encarnações. Algo presente na dinâmica do olhar, de quem observa e quem é observado. O que faz uma imagem ser digna de atenção, de ganhar as telas do mundo (ou outdoors, como o rosto de Ally ganha em determinado momento), em detrimento de qualquer outra coisa que possa ser vista. Daí vem o uso tão inteligente e tocante de closes. A câmera de Cooper se torna tão afetuosa e íntima quanto a relação que Jackson e Ally desenvolvem, seguindo de perto cada movimento de seus corpos. Tudo envolvido nas belas cores vibrantes da iluminação dos palcos por onde eles se apresentam. Até mesmo o reflexo das luzes na lente da câmera (efeito conhecido como lens flare) é usado poeticamente para reforçar este efeito.

As imagens nos colocam no mesmo ponto de vista de Ally e Jackson, sequestrando para o espectador o olhar para o mundo que Ally e Jackson possuem. Tudo é mais bonito e vivo quando há arte e poesia preenchendo o ambiente. O que estava apenas implícito nos outros filmes, aqui ganha proeminência: o álcool e as drogas aliviam a feiura do mundo. Ver Ally criando reduz a necessidade de dormência dos sentidos e a felicidade real é possível. Mas este filme é, afinal, um melodrama e sua afiliação ao gênero não estaria completa sem a presença de tragédia.

Para Jackson a ruína está em, justamente, ver algo puro e bonito ser corrompido pela indústria da música, que irá moldar Ally e seu talento, transformando tudo em mercadoria. Esta talvez seja a mudança mais radical em relação aos outros filmes, que marcaram a tragédia do protagonista masculino (os nomes mudaram em cada nova versão). Sua angústia estava em atrapalhar o sucesso de sua musa. Cooper dá um passo além. Estar sóbrio e ver a beleza que ele tanto admirava ser corrompida é demais para seu personagem.

Uma história sobre talento só funciona na medida em que talento real está diante das câmeras. Janet Gaynor e Fredric March, Judy Garland e James Mason, Barbra Streisand e Kris Kristofferson, todos eram tão bons de ver e ouvir quanto seus personagens. Lady Gaga e Bradley Cooper não devem nada aos seus antecessores. Pelo contrário. É surpreendente o quanto ela consegue transmitir de emoção com um olhar ou o quanto ele é capaz de sustentar uma canção pop de forma autêntica.

Todas as qualidades deste Nasce uma Estrela se solidificam nas cenas em que Jackson Maine e Ally estão no palco. É quando a câmera se torna mais frenética e poética, ligando as duas almas que unem suas vozes para cantar. A felicidade dos personagens é palpável na tela, se traduzindo nas canções, todas tão bonitas quanto as cantadas antes por Kristofferson, Streisand ou Garland. É um filme tão cheio de vida que chega a surpreender a lembrança que Cooper nunca tinha dirigido antes, ou que Gaga nunca tinha um papel dramático central no cinema. Algumas estrelas renascem várias vezes.

Texto publicado originalmente na edição impressa da Gazeta do Povo.

Sobre o autor Veja todos os posts

Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *