Um novo humor

As sitcoms contemporâneas oferecem empatia como alternativa diante da miséria humana

Há certo consenso de que vivemos a era de ouro da produção televisiva estadunidense. O fluxo de dinheiro e criatividade foi parcialmente redirecionado dos grandes estúdios de cinema de Los Angeles para a os canais de TV de Nova York, resultando em produções muito mais ambiciosas visualmente e profundas tematicamente. Da meditação sobre a natureza do mal humano em Breaking Bad aos cenários impressionantes de Game of Thrones, das imagens lovecraftianas da primeira temporada de True Detective ao surrealismo psicótico e psicodélico de Legião, as séries se tornaram um ponto central do debate cultural.

Quando se pensa televisão de qualidade, porém, a conversa normalmente fica nas produções dramáticas. Quase nunca as cômicas, conhecidas popularmente como sitcoms (situation comedy, ou comédia de situação na tradução). Injusto, já que as produções de humor não apenas vivem um momento particularmente inspirado, como também oferecem alento e reflexão em tempos sombrios. As comédias também se beneficiaram do fluxo de capital, possibilitando o abandono dos cenários fixos, da claque (aquela risadinha que serve para avisar quando a piada terminou) e da multi-câmera, o que mantinha a iluminação dura, geral e pouco criativa. Em seu lugar entrou a câmera única em locação, permitindo um apuro visual ainda inédito para o sub-gênero. As sitcoms se tornaram mais parecidas com a própria vida.

O cuidado com as imagens veio acompanhado do que hoje é percebido como uma profunda mudança narrativa, marcando uma diferença radical em relação às séries de comédia dos anos 90. Pense em como o quarteto central de Seinfeld, uma das mais influentes sitcons, mudou pouco ao longo das temporadas. Os personagens se mantiveram essencialmente os mesmos, reflexos da neurose e apatia urbanas que marcaram fortemente o modo de vida nas grandes cidades ocidentais na década de 90. Um de seus herdeiros contemporâneos, Master of None, vê Dev, o personagem de Aziz Ansari, mudar seu comportamento, especialmente na segunda temporada, reagindo aos acontecimentos estabelecidos na série.

Em produções como Frasier, Friends ou a já citada Seinfeld o esforço criativo estava em manter estes personagens presos em seu status inicial. Uma mudança nessa dinâmica – alguém se muda de cidade, uma dupla se casa, alguém morre etc – sinaliza o final da história. Cada episódio é deliberadamente montado para que os integrantes comecem e terminem da mesma forma. O objetivo prático é não alienar o espectador eventual, que ligou a TV por acaso e quer só diversão escapista por alguns minutos. Séries como The Big Bang Theory, de Chuck Lorre, mesmo que aceitem eventuais mudanças em sua organização interna, ainda operam muito dentro destes parâmetros.

Cavalo de batalha

BoJack Horseman, criada por Raphael Bob-Waksberg para a Netflix, se apoia muito fortemente nesta mudança de perspectiva. Seu personagem central é um cavalo antropomórfico que fez sucesso nos anos 90 ao estrelar uma siticom chamada Horsin’ Around. A série dentro da série repete os clichês estabelecidos desde I Love Lucy: um jovem, BoJack no caso, adota três crianças que o fazem repensar sua vida. Todo episódio de Horsin’ Around, pelo que podemos perceber no pouco que vemos, repete os mesmos ciclos: as crianças aprontam, BoJack descobre, confusão, solução surge do perdão e da aceitação. Tudo começa novamente nos próximos episódios.

A vida, porém, não é assim, como argumenta Will Schoder em seu vídeo no YouTube sobre BoJack Horseman, “How BoJack Horseman subverts narrative” (Como BoJack Horseman subverte a narrativa). BoJack, apesar de ter fama e dinheiro, leva uma existência miserável. Todo o álcool e sexo do mundo não são suficientes para preencher o vazio de sua alma. Ele busca o mesmo tipo de validação e perdão que seu personagem recebia e oferecia em Horsin’ Around, mas há sempre o dia seguinte. Ou, como diz o próprio Bob-Waksberg, “o negócio de passar pelo pior dia de sua vida é que o dia seguinte não será o pior”.

O cinismo de Seinfeld definia seus personagens e sua relação com o mundo. Em BoJack Horseman é mero ponto de partida para refletir sobre o mundo e o que significa existir em uma série de altos e baixos. Em entrevista para a Vice, Bob-Waksberg resume bem sua abordagem: “Nós não somos um show que tem medo de ser cínico”. Depois emenda, “acho que a coisa mais difícil é menos sobre ‘isso vai ser engraçado?’, mas sim ‘isso é verdadeiro?'”. Para ele ser verdadeiro implica em fazer um show sobre este famigerado “dia seguinte”.

BoJack Horseman é um bom ponto de partida por se colocar frontalmente diante do modelo clássico de sitcom, com cenários fixos, multi-câmera e claque. Há outros tantos exemplos que nos ajudam a perceber essa mudança. A já citada Master of None, na superfície, é muito semelhante a Seinfeld, especialmente na primeira temporada. Um jovem e seus amigos navegam por Nova York em busca de algo que alivie a solidão, seja amor seja o tempo passado com os amigos. Ao mesmo tempo, lá está também a meditação sobre a experiência de ser uma segunda geração de imigrantes (e ser visto como tal), ou do impacto que nossas decisões possuem em nossas vidas.

A segunda temporada é ainda mais ambiciosa. O primeiro episódio, em preto e branco, se passa na Itália e cita nominalmente a obra de Michelangelo Antonioni. Outros irão interromper a progressão narrativa para fazer exercícios de de estilo, como no belamente editado First Date, sobre a leviandade das relações amorosas mediadas pelos aplicativos de relacionamento. Ou ainda Thanksgiving, que parte do cliché dos episódios de Ação de Graças (Friends tinha um em toda temporada) para falar de raça e sexualidade com as tradicionais famílias americanas em perspectiva – além de resgatar Angela Bassett do ostracismo e o mundo é um lugar um pouco melhor por isso.

Espírito do Tempo

A ideia de unidade familiar como valor intrínseco e que a felicidade está no perdão e compreensão, sem uma real transformação interna, está presente no imaginário estadunidense desde o pós-guerra. Essas narrativas estão na gênese da ideia de sitcom, partindo de I Love Lucy e Os Flintstones e se cristalizando em Everybody Loves Raymond e Os Simpsons. Não por acaso todas essas séries acompanham uma família nuclear e suburbana. Desde o 11 de setembro, porém, todos esses valores se tornam passíveis de questionamento.

Para os criadores destas novas sitcoms, em geral de inclinação liberal e social-democrata, não basta ser um pai de família provedor para ser considerado uma pessoa boa. Não é nosso status, ou o que pensamos sobre nós mesmos, que definem isso, mas sim nossas ações em relação ao universo que nos cerca. Nenhuma série aborda isso de forma tão direta quanto The Good Place, criação de Michael Schur para a NBC. Nominalmente, inclusive, citando filósofos como Kant e Kierkegaard e questionando problemas mentais formulados para exemplificar correntes de pensamento.

Na trama, Eleanor Shellstrop, vivida por Kristen Bell, morre e é enviada ao “Lugar Bom”, o Céu ou Paraíso deste universo. O problema é que ela foi confundida com uma pessoa genuinamente boa e precisa dar o seu melhor para não ser a pessoa cínica e egoísta que sempre foi em vida, o que a levaria ao “Lugar Ruim”, o Inferno. Para sua sorte, seu par é Chidi Anagonye, papel de William Jackson Harper, que em vida foi um professor universitário de ética e moral.

Em entrevista para o The Telegraph, Schur resume bem a dinâmica central entre os personagens. “Eleanor está aprendendo sobre utilitarismo. Chidi diz para ela, ‘Você simplesmente faz a maior quantidade de coisas boas e a menor quantidade de maldades, e as ações corretas são apenas que levam ao bem maior para a maior quantidade de pessoas’. A resposta de Eleanor para isso é ‘Isso é bom! Adorei isso, vamos fazer essa, vamos esquecer todas as outras’. E ele diz, ‘Sim, mas tem um problema, que é isso poder ser usado para justificar torturar uma pessoa para salvar mil’, e ela faz essa expressão de desapontamento profundo. Esse é o sentimento que eu tenho todo o tempo, enquanto você lê todas essas teorias diferentes e pensa que essa faz sentido aí vem outra pessoa e faz um monte de furos nela”.

O comentário de Schur é um reflexo de suas preocupações intelectuais, claro, mas não apenas isso. Uma de suas séries anteriores, Parks & Recreation, fazia um debate profundo entre libertarianismo, corporificado por Ron Swanson, vivido por Nick Offerman, que desprezava tudo ligado a estruturas governamentais (apesar de ocupar cargo público), e uma visão mais à esquerda, representada por Leslie Knope, papel de Amy Poehler, uma burocrata engajada em melhorar a vida de sua comunidade. O embate amigável rendia excelentes piadas, mas também resultava em uma análise sobre a relação entre o americano médio e o ambiente político.

The Good Place vai além. Abre mão da relação entre os indivíduos e instituições que tanto marcaram os outros trabalhos de Schur (The Office US, Parks and Recreation e Brooklyn 99) e mergulha na relação entre indivíduos e indivíduos e o que isso significa do ponto de vista existencial. Novamente, os ciclos narrativos fechados em si mesmos em cada episódio são defenestrados em privilégio do desenvolvimento dos personagens, que perpetuamente questionam o universo em que se vêem inseridos. Assim, essas séries (e tantas outras em exibição) deixam de oferecer escapismo e entretenimento. Elas buscam, ao contrário, colocar um espelho diante da sociedade. Se isso é melhor, só o tempo dirá.

Texto publicado originalmente na edição impressa da Gazeta do Povo.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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