No ambicioso “Mãe!” o diretor de “Cisne Negro” abraça a temática bíblica para tratar do horror humano.
É fácil entrar no cinema para ver “Mãe!”, o mais novo trabalho de Darren Aronofsky que chegou aos cinemas na última quinta (21), pensando se tratar de mais um filme de horror. Na primeira metade elementos do gênero são usados para gerar o clima de tensão sentido pela Mãe (Jennifer Lawrence), mas na medida em que a narrativa se torna progressivamente surreal fica claro que este é um filme complexo, que usa o horror como fachada para criar uma ambiciosa alegoria bíblica sobre a relação entre a humanidade e o mundo.
O horror é uma especialidade estilística de Aronofsky. Ele usa o gênero para demonstrar visualmente o estado mental da Mãe. Não é diferente das sequências rápidas em super-close de “Réquiem Para um Sonho” que emulam o torpor das drogas ou da claustrofobia dos bastidores do teatro em “Cisne Negro”, reforçando a paranoia da bailarina. Em “Mãe!”, porém, o jogo é ainda mais delicado.
Aronofsky praticamente cola a câmera em Jennifer Lawrence, fazendo com que seu rosto tome todo o quadro. É parecido com o uso de László Nemes em “O Filho de Saul”, ganhador do Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira de 2016, ainda que com menos rigor. Assim, enquanto as pessoas vão entrando na casa que a Mãe cuida com todo zelo para que Ele, o poeta vivido por Javier Bardem, possa criar em paz, cada giro de câmera faz com que nós, espectadores, sejamos tão surpreendidos pelo que está fora de quadro quanto ela.
O trunfo de Aronofsky está em seu corpo de atores. Difícil pensar que o filme funcionaria de outra forma. Especialmente na primeira hora, que é mais lenta e absurda em parte pelas regras do jogo não estarem ainda muito claras. Bardem e Lawrence brilham ao se permitirem encarnar um conceito, uma forma etérea sem personalidade. A jovem atriz, nesse sentido, fica com o maior desafio ao ter que dar vida a uma força da natureza e, ao mesmo tempo, servir como avatar para o espectador, refletindo nossa própria confusão com o despropósito do desenrolar da trama.
É Michelle Pfeiffer quem rouba a cena, porém, interpretando a figura da Mulher – Eva e Serpente a um só tempo – divertindo-se horrores com isso. Sua capacidade de expressar inocência e malícia em uma mesma expressão é quase sobrenatural, criando uma dualidade que reforça a fluidez de outros personagens, como a já apontada na personagem de Lawrence. Não é difícil imaginar que Pfeiffer abocanhe todos os prêmios de Melhor Atriz Coadjuvante por seu trabalho em “Mãe!”.
Quando as pessoas estranhas começam a invadir a casa, trazendo caos para a paz de Mãe e Ele, o horror não apenas se aprofunda como ganha toques surrealistas, dignos de Luis Buñuel – “O Anjo Exterminador”, clássico do mestre espanhol, é influência declarada de Aronofsky. E quanto mais bizarra fica a narrativa de “Mãe!” mais clara se torna a grande alegoria religiosa do filme. Personagens que falam em “Paraíso”, “Apocalipse”, “Anjos” e “Deuses”, rivalidade entre irmãos, fruto proibido, bebês messiânicos e adoração beirando o irracional são algumas das mais óbvias referências bíblicas.
A metáfora é clara, mas não é tão óbvia justamente pela fluidez com que os personagens se encaixam na trama de Aronofsky. A ligação da Mãe com a casa permite que a vejamos como a Mãe Natureza, ou Gaia, a Deusa Grega. Ao mesmo tempo, é ela quem expulsa o Homem (Ed Harris) e a Mulher do gabinete onde o poeta escreve, espécie de Jardim do Éden onde o Fruto Proibido do conhecimento está exposto, o que lhe confere o status de anjo, nome pelo qual também é chamada em determinado momento. Esta última leitura é reforçada pelo fato dela, ao contrário dos demais, não possuir livre-arbítrio, o que seria a fagulha da inveja de Lúcifer e motivo de sua queda, portanto.
A alegoria religiosa não é novidade para Aronofsky, sendo bastante declarada em “Noé” e “Pi”. Em “Mãe!”, todavia, a contenção do cenário – toda a ação acontece dentro da casa – e a inventividade do roteiro permite que ele explore a relação entre a humanidade e a Criação tomando o ponto de vista do mundo. A câmera gira focada no rosto de Lawrence que segue confusa com aquela multidão de pessoas que invadem sua casa. O surrealismo buñuelesco se transfigura em uma dura evisceração do pior que há na forma como nós, seres humanos, agimos diante do ambiente em que vivemos.
É quando a segunda metade se paga. “Mãe!” apresenta um mergulho profundo na violência com que tratamos uns aos outros e o ambiente que nos rodeia. Na segunda metade o horror deixa de ser psicológico e é trazido para a tela em uma sequência de acontecimentos retirada dos piores pesadelos. O livre arbítrio humano, combinado com seu egoísmo e a necessidade divina por adoração é a combinação fatal. Aronofsky faz o que poucos autores têm coragem e leva seu filme até as últimas consequências, tornando, desde já, “Mãe!” uma das obras mais importantes de 2017.
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Texto publicado originalmente na edição impressa da Gazeta do Povo.
Ainda acho que toda a sequência final tem uma influência nítida de George Romero em A noite dos MOrtos-vivos.