Meio século de futuro (2001: Uma Odisseia no Espaço)

50 anos depois de estrear, 2001: Uma Odisseia no Espaço segue causando impacto

Talvez a melhor descrição sobre sensação de assistir 2001: Uma Odisseia no Espaço (2001: A Space Odyssey, 1968) seja de George Lucas, cuja saga Star Wars é óbvia herdeira estética do clássico de ficção científica: “é como ver um pôr do sol”. Como um fenômeno da natureza, o filme é hipnótico em sua lentidão e encantador em seus mistérios. O último 4 de julho marcou os 50 anos do lançamento brasileiro (abril de 1968, nos EUA) desta obra que é mais um poema sinfônico que cinema narrativo. Meio século de acúmulo de teorias que tentam entender os reais significados da reflexão existencial futurista de Stanley Kubrick, um dos mais instigantes gênios da sétima arte, que completaria 90 anos no final de julho, não tivesse nos deixado.

Antes mesmo da logo da MGM aparecer na tela, 2001 já causava polêmica. Ficção científica não era um gênero bem visto. Até então eram produções de baixo orçamento que justificam em parte a conotação pejorativa que a expressão “Filme B” possui. Grandes diretores não abraçavam o gênero e Kubrick, depois de Spartacus (1960), Lolita (1962) e Dr. Fantástico (Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb, 1964), era um dos maiores. Seu status também explica como ele conseguiu viabilizar o projeto.

A expectativa era enorme, o que pode ser apontado parcialmente como responsável pela rejeição inicial (parte da mítica de 2001 é que ele foi um fracasso de bilheteria. Não foi. Ele demorou a encontrar seu público, mas, quando o fez, foi estrondoso). Críticas estabelecidas como Pauline Kael e Renata Adler elogiavam o espetáculo visual, mas reconheciam uma certa dificuldade de se conectar com o filme. Roger Ebert, ainda seis anos antes de se tornar o primeiro crítico de cinema a vencer um Pulitzer, apreendeu muito bem o espírito de confusão geral diante da obra: “o fascinante sobre este filme é que ele falha no nível humano, mas triunfa magistralmente na escala cósmica”.

Foi se tornando mais e mais evidente ao longo dos últimos 50 anos que Kubrick não estava nem um pouco preocupado com qualquer “nível humano”. Daí a frustração do espectador médio que não encontra nenhum personagem com quem se identificar. O que 2001 oferece, no lugar das armadilhas dramáticas hollywoodianas, é uma reflexão sobre humanidade e sua relação com tecnologia e violência. Uma odisseia coletiva que acontece ao longo de milênios, resumidos no famoso corte do osso girando no ar para a estação espacial orbitando a Terra.

Poesia sinfônica

A famigerada preocupação com detalhes kubrickiana é a grande responsável por 2001 ter se tornado este grande filme-mistério, gerando debates intermináveis sobre seus reais significados. O que são os monolitos negros? HAL é capaz de errar? Para onde vai Dave Bowman (Keir Dullea) e o que afinal ele se torna? Todo o filme é construído para gerar estas dúvidas, com buracos narrativos criados pelo próprio Kubrick. Parte da prova está no roteiro e novelização publicada como romance posteriormente pelo corroteirista Arthur C. Clarke.

Kubrick retirou deliberadamente uma série de momentos expositivos, que deveriam ajudar a guiar o espectador. Um exemplo é logo depois do famoso corte do osso para a estação espacial. Uma narração em off deveria informar que ali estavam alojados mísseis nucleares que serviriam de ameaça entre as nações (em 68 a Guerra Fria estava em seu apogeu), reforçando a questão da tecnologia com potencial para violência. Assim como o osso permite a caça, mas também a agressão, a energia nuclear permite a viagem espacial, mas também a bomba.

O roteiro e o romance também estabelecem a origem dos monolitos. Seriam mecanismos criados por uma avançada raça alienígena que teria a função de acelerar a evolução da raça humana. Depois do contato os símios se tornam capazes de usar ferramentas e o cosmonauta Dave se torna (evolui para?) o Star Child, o bebê gigante que simboliza um novo começo, estágio final do desenvolvimento humano. Os alienígenas deveriam aparecer no quarto-prisão de Dave, mas Kubrick nunca ficou satisfeito com o desenho dos personagens, descartando-os completamente.

A economia de elementos narrativos é compensada com a poderosa combinação de imagens e sons. O desenvolvimento cognitivo dos símios é demonstrado sem o suporte da palavra, em uma exploração imagética digna dos melhores filmes mudos. A nave de passageiros acopla na estação espacial ao som de Danúbio Azul, de Johann Strauss, emulando uma valsa interestelar. Dave mergulha em um portal no espaço-tempo em uma sequência absolutamente surreal e psicodélica, novamente, sem nenhuma linha de diálogo. Se aumenta a confusão, aumenta também o potencial poético.

Esta contenção narrativa atende a algumas funções bem óbvias. A primeira é levar o espectador a atentar para as imagens, a mergulhar sensorialmente no que lhe é apresentado sem distrações. A segunda é valorizar os momentos em que a palavra é usada, como na icônica “morte” de HAL 9000, o computador de bordo da Discovery One que se revela o mais humano dos personagens. Mais importante, porém, é justamente o potencial de obra-mistério que se abre ao tornar a narrativa tão árida e as imagens tão ricas.

Mistérios e significados

Revelar as intenções originais do roteiro de 2001: Uma Odisseia no Espaço parece à princípio esvaziar seus sentidos potenciais. O contrário é mais verdadeiro, porém. As escolhas de Kubrick transformam o filme em um grande labirinto cinematográfico, um prato cheio para os entusiastas da análise cinematográfica. Quanto mais revisto, mais ele se abre para novas possibilidades, ganhando novos tons a medida em que o mundo ao seu redor se transforma.

Isso não quer dizer que 2001 – título remete a ideia de que 1000 é um número infinito da cultura árabe, partindo das 1001 noites – seja uma tela em branco onde projetamos nossos próprios anseios, cabendo qualquer tipo de interpretação esotérica. Parte do fascínio diante dele está no quão coeso é seu discurso, por mais diferentes que sejam suas três partes: Aurora do Homem, com os símios; Estação Lunar; e viagem da Discovery com HAL e Dave, que se transforma no Star Child no epílogo final.

Os monolitos, por exemplo, independente de sua origem ou função, marcam uma profunda transformação nos símios. O uso de ferramentas, argumenta Kubrick no filme, é mais simbólico do que a mera mudança da dieta ou o exercício de poder através da arma. É o momento em que nossos ancestrais foram capazes de olhar para o mundo a sua volta e ressignificá-lo. Nas mãos do primata, o osso tem potencial infinito e será usado.

Daí, em parte, a força do corte que liga o osso ao satélite. O segundo monolito aponta para uma inversão radical. HAL, um artefato tecnológico, usa humanos como ferramentas. Daí, em parte, sua humanização. Seu erro, catalisador da crise final, é não se dar conta de que foi programado por humanos, passíveis de erros. O computador sonha que é humano sonhando que é Deus.

Ao matar HAL, sua cria, Dave mergulha no espaço profundo – terceiro monolito –, testemunhando a si mesmo envelhecer no quarto-prisão-jaula, onde tempo, espaço, vida e morte se dissolvem em uma abstração visual. Só então o quarto e derradeiro monolito surge diante de si, permitindo que ele transcenda a existência humana. O sonho divino é uma possibilidade real.

A reflexão metafísica de Kubrick e Clarke transformam 2001: Uma Odisseia no Espaço em uma singularidade, um ponto de não retorno que muda o mundo e a humanidade para sempre. O próprio filme é, portanto, um monolito que marca um novo estágio na forma como é possível fazer e ver cinema. Que venham mais 50 anos de mistérios e possibilidades.

Publicado originalmente na edição impressa da Gazeta do Povo.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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