“Ela” faz doce reflexão sobre os relacionamentos humanos

Ela

Em uma genial tira em quadrinhos, Bill Waterson, através de seu Calvin, definiu o amor como uma “série de reações físico-químicas que têm como função a perpetuação da espécie” (cito de cabeça). O que parece fazer sentido, já que é o amor que forma famílias e leva à procriação. Exceto quando não faz. O que é bastante comum, na verdade. Há uma série de questões no amor que não respondem à biologia. É um problema de outra ordem. E é desse tipo de problema que é feito o belo “Ela”, mais novo filme de Spike Jonze.

Joaquim Phoenix é Theodore, um escritor de cartas para outras pessoas – alguém que trabalha emprestando seus sentimentos e palavras para terceiros, não coincidentemente – que vive uma vida solitária e melancólica agora que está solteiro. À beira da depressão ele encontra uma série dificuldade de se conectar com as pessoas, mesmo família e amigos de longa data, como a colega de faculdade e vizinha Amy, vivida por Amy Adams. Até que ele resolve instalar um muito falado upgrade no seu Sistema Operacional – OS -, fazendo com que ele mude de uma voz impessoal, responsável por recados, para uma consciência que aprende e sente com o tempo.

Rapidamente Samantha, o nome do OS de Theodore, se torna a sua melhor amiga, confidente e companheira. E ambos, aos poucos, começam a sentir algo mais um pelo outro. E é fácil apontar os problemas de relacionamento deles, em um primeiro momento, como referentes ao fato de que Samantha não possui corpo físico – ou não possui alma, ou é uma coisa, ou tantas outras acusações. Mas não é sobre isso que Jonze trata no final das contas.

“Ela” é sobre qualquer relacionamento e os problemas que vêm diretamente ligados ao fato de que tomamos a decisão de dividir uma parte de nossa vida com outra pessoa. Em geral, somos mesquinhos, possessivos e auto-centrados demais para que isso dê certo. Mas como o amor não é uma coisa racional, acabamos nos enfiando de cabeça nisso, até que seja tarde demais e, se a ferida não for fatal, passaremos o resto de nossa vidas com a cicatriz. Até que resolvemos fazer tudo de novo.

Mas é claro que parte do mérito do relacionamento entre Samantha e Theodore funcionar vem muito dos atores. Phoenix cria para seu personagem uma cara de cachorro abandonado perfeita para o papel. E, claro, Scarlett Johansson, responsável pela voz da charmosa SO, rouba a cena toda vez em que `aparece`. A ligeira rouquidão da sua voz, tão sensual quanto absolutamente humana, fazem com que nós mesmos, como audiência, nos apaixonemos por ela, em maior ou menor medida. E não é preciso colocar em cena nem menos um pequeno pedaço do curvilíneo corpo da atriz para isso.

Jonze constrói seu pequeno drama com uma delicadeza extrema. O futuro próximo é montado em uma metrópole possível, onde os avanços tecnológicos são discretos e concretos. A moda é apenas ligeiramente diferente do que usamos e nem é o suficiente para causar estranhamento visual. Tudo com uma impressionante atenção aos detalhes, como colocar a maior parte dos figurantes parecendo malucos ao conversar com seus respectivos SOs, fazendo um belo comentário sobre a nossa relação com a tecnologia.

Comentário esse, em temos de pessimismo apocalíptico da internet de bolso – “guarde esse smartphone e conversem entre si”, brada o saudosista típico (em geral no Facebook) -, com um otimismo ainda inédito no cinema. A tecnologia que nos conecta nos permite que nos relacionemos o tempo todo, com todo mundo. E, no caso do filme, a conexão é com e através de alguém desenhado para ser nossa melhor companhia. Como resistir? Porque resistir?

Publicado originalmente no Portal POP.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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