Perfil de Aly Muritiba, o cineasta que filmou o dia a dia dos Agentes Penitenciários de São José dos Pinhais.
Para fugir da opressão do cotidiano como Agente Penitenciário da Casa de Custódia de São José dos Pinhais, Aly Muritiba resolveu se matricular no recém-criado curso de cinema da Unespar. A cadeia, nas palavras do próprio cineasta, era “um ambiente que te suga muita energia, é pesado”. O que começou como uma válvula de escape logo contaminou a forma como ele percebia o espaço e as relações humanas lá abrigadas e culmina com o lançamento comercial de A Gente, documentário sobre os a Equipe Alfa da Penitenciária.
O momento de revelação aconteceu em um domingo, dia de visita. “Eu estava circulando por uma das galerias e vi uma senhora acompanhada por uma criança. Quando nós nos cruzamos ela disse: ‘inclusive esse moço aí trabalha com seu pai aqui. Eles são colegas!'” A ficção criada pela senhora para proteger a inocência infantil é o veio narrativo de A Fábrica (2011), o primeiro projeto que junto de O Pátio (2013) e A Gente (2013) integram a Trilogia do Cárcere, aclamada pela crítica quando exibida em festivais tanto no Brasil quanto fora.
Ainda que não estivesse muito claro como seriam os filmes, Muritiba sempre teve em vista compor uma trilogia sobre a vida na cadeia. “A primeira ideia foi A Fábrica. Mas eu falei ‘Ok, se eu fizer este filme vou falar de um dos tipos sociais que habitam que são os familiares dos presos. Seria bom também falar dos presos, mas também seria bom falar dos agentes. E a minha ligação com sindicato e com luta de classes me fazia ver que o sistema era um grande monstro, inclusive para aqueles que estavam a serviço do sistema”, explica.
Assim foi. A Fábrica, curta de ficção, narra o périplo de um preso que contrabandeia um celular para dentro da cadeia para conversar com sua filha que, por sua vez, pensa que o pai está longe por trabalhar em uma fábrica. O Pátio, filme-dispositivo (com regras fixas e rígidas de execução) que mantém a câmera parada atrás das grades enquanto registra o banho de sol dos presos, com a premissa de que “nunca fizeram um filme sobre presos que exercem a liberdade mesmo estando presos”.
A Gente é o único longa da trilogia. Como na história da senhora que cria uma narrativa para tornar a realidade tolerável, o filme é um híbrido entre ficção e documentário. Ainda assim, as cenas encenadas – sempre baseadas em acontecimentos reais, de acordo com o diretor – são quase impossíveis de serem diferenciadas das gravadas no calor do momento.
O ponto de vista de Muritiba, a essa altura de sua carreira já um cineasta experiente, aliado ao seu conhecimento dos mecanismos internos e entraves burocráticos do sistema prisional, fazem de A Gente um documentário único. Comparável apenas a O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003), de Paulo Sacramento, que colocou as câmeras nas mãos dos detentos do Carandiru, em São Paulo.
Da Bahia para a cadeia
Aly Muritiba saiu de Mairi, cidade de menos de 20 mil habitantes do interior da Bahia, aos 17 anos para estudar em São Paulo. “Falo que fui estudar para pegar um atalho na história, mas no fim das contas eu fui como boa parte dos imigrantes nordestinos: para tentar a vida. Então cheguei lá aos 17, mas só entrei na universidade aos 21. Fiquei três anos ralando, trabalhando, para me estabelecer”, conta.
O interesse pelo cinema só chegou em sua vida tardiamente. Enquanto trabalhava como bilheteiro na CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) se viu como figurante em De Passagem (2003), longa de Ricardo Elias, que usou sua estação como locação. “Muito embora eu tenha depois descoberto que era um filme pequeno, de orçamento pequeno, me assustou o tamanho da estrutura, a quantidade de gente, a demora para filmar uma cena. Uma cena super simples que era um cara comprando um bilhete de trem e os caras ficaram seis horas rodando e eu pensando ‘meu Deus, que troço demorado'”.
Muritiba é um raro caso em que a cinefilia não é o primeiro passo na trajetória do cineasta, mas sim a vivência em um set. Depois de fazer figuração em De Passagem o curso de História que cursava na USP logo ganhou ramificações: “comecei a me matricular em algumas optativas que tinham ligação com audiovisual. Fiz uma de Antropologia Visual, fiz algumas de História das Artes Visuais, mas muito mais como curioso do que como alguém que queria fazer cinema mesmo”.
Com o curso de História chegando ao fim; a esposa com o pós-doutorado, que lhe mantinha em São Paulo, já finalizado e querendo voltar para a cidade onde cresceu e vive a família; Aly Muritiba direciona suas atenções para Curitiba. Como empregos como professor de História não surgiram neste primeiro momento, “prestei concurso para Bombeiro e para Agente Penitenciário. Passei nos dois, fiquei um ano nos Bombeiros esperando ser chamado para o segundo porque pagava melhor. Em 2006 entrei na cadeia”.
O cinema, que no início era uma válvula de escape para o cotidiano da cadeia, aos poucos se tornou um meio de vida. Com a carreira de sucesso de A Fábrica e a saúde financeira da Grafo Audiovisual, produtora que abriu junto de seu sócio Antônio Júnior, Muritiba vislumbrou a possibilidade de viver de cinema. Em 2012 pediu licença não-remunerada do concurso. Chegava ao fim sua primeira passagem pela Casa de Custódia de São José dos Pinhais.
A Gente
Não ficou longe por muito tempo. “Em 2013, quando decidi filmar A Gente, pedi reintegração. Voltei a ser agente penitenciário”. Ficou claro, para ele, que estar dentro da cadeia marcava uma diferença fundamental dentro da proposta do documentário. Entre fazer um filme “sobre eles” ou “sobre a gente”, reforçando o trocadilho do título. A brincadeira fonética, inclusive, é tão importante que chega a ser replicada no nome em inglês: C(us)todians. Começava assim o período de oito meses de gravação.
“Por uma questão de estratégia, trabalhei na cadeia na equipe que viria a ser filmada quase um ano sem falar nada de filmagem, apenas para reconstruir uma intimidade, para voltar a ser um agente”. Aos poucos ele ia trabalhando a ideia junto aos colegas da Equipe Alfa, que depois seriam retratados no documentário. “Fui convencendo de um por um, até que eles começaram a falar ‘e aí, quando você vai começar a filmar?'”, sinal de que era chegado o momento.
O projeto mudou muito, como é comum em documentários, ao longo do processo. Por um mês e meio Muritiba tentou gravar com uma equipe, ainda que reduzida. João Mena Barreto fazendo a captação de som e Elisandro Dalcin operando a câmera. “Mas não funcionava. Bagunçava a rotina da cadeia porque a direção exigia que tivesse dois guardas acompanhando esses caras, fazendo a segurança, desfalcando a equipe. E você tinha dois sujeitos estranhos circulando”. A solução foi se tornar um Agente Penitenciário com uma câmera na mão.
O efeito sobre os retratados é impressionante. Muritiba não apenas sabe exatamente como se posicionar para registrar o dia a dia da cadeia, captando o clima labiríntico e claustrofóbico, como também consegue uma naturalidade pouco usual de seus retratados. Por isso é tão difícil diferenciar os momentos encenados dos acontecimentos casuais. De certa forma os demais carcereiros passam o tempo todo atuando para a câmera, que se torna uma presença semi-transparente, senão invisível.
A própria relação de Muritiba com o trabalho na Penitenciária, que aproveitava as escalas para estudar cinema e dar aulas de História, guiou seu olhar para o documentário. Sua busca era pela dupla vida dos personagens, comparando o dentro e o fora da cadeia. O foco se volta para Jefferson Walkiu quando ele assume o posto de Inspetor de Equipe, servindo como “elo de ligação entre a administração, que é a burocracia, e o operacional, que é o agente penitenciário”.
Muritiba soube que tinha uma linha narrativa quando se viu de câmera na mão no momento em que Walkiu anunciava ter assumido o cargo: “para mim era muito importante filmar o inspetor porque eu sabia que através dele eu teria acesso aos absurdos burocráticos que sempre reverberavam no guarda que estava na galeria fazendo a operação do dia a dia. Quando Walkiu se tornou inspetor eu tive a sorte de estar lá com a câmera e filmar ele assumindo, que é a cena de abertura. Com a minha experiência de sete anos eu sabia que ele não ia durar muito. Porque ninguém dura”.
A janela de tempo em que Walkiu trabalha como Inspetor é cara ao filme, mas não é só por isso que ele chamou atenção de Muritiba. Jefferson é pastor evangélico nas horas vagas e, especialmente, um pai de família amoroso. Os outros dois curtas da Trilogia do Cárcere são centradas em pais que buscam se manter presentes na memória afetiva de seus filhos. Ao mesmo tempo, é muito clara a aproximação entre a construção que Muritiba faz de Walkiu e os dois personagens centrais de Para Minha Amada Morta (2015), roteiro que era desenvolvido simultaneamente às filmagens de A Gente.
“Aos poucos eu fui me dando conta disso e construindo a ideia que na medida em que ele vai perdendo o controle na cadeia ele vai tentando ordenar as coisas na vida dele”, revela o cineasta. Se a profissão de Walkiu é a de carcereiro, responsável pela clausura, em suas horas vagas ele se posiciona como um libertador. Daí a beleza da oposição entre as sequências dentro da Penitenciária e as filmadas na casa de Walkiu ou na igreja, onde aconselha jovens fiéis, batiza novos convertidos e prega a homilia.
Muritiba compara seu protagonista a Dom Quixote, um personagem trágico em uma luta inglória contra monstros imaginários. “E me dei conta que o antagonista era o Estado, o Governo, esse elemento invisível que deveria ser evidenciado na burocracia, nas dificuldades burocráticas que impedem o agente de cumprir sua função”, completa. Por isso A Gente termina justamente quando Walkiu não vê outra alternativa que não pedir para deixar o cargo, simplesmente retroalimentando um círculo vicioso constante da inépcia administrativa apontada pelo documentário.
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Texto publicado originalmente na edição impressa da Gazeta do Povo.