Em “Noé” Aronofsky discute a validade das decisões em nome da fé

Noé

Considerando que vivemos em um país de maioria cristã, é bem difícil que você nunca tenha ouvido falar dessa história: Noé, um dos primeiros homens, recebe a missão divina de proteger a criação de um dilúvio vindouro, que purificaria a Terra de todo mal – leia-se: homens. Mas para Darren Aronofsky esse é apenas um ponto de partida para questionar as escolhas humanas, feitas pela fé, ou pela falta dela.

Russell Crowe dá vida ao personagem título. O último adulto da linhagem de Set, terceiro filho de Adão e Eva. Todos os outros humanos vivem sob a marca da maldição de Caim, o assassino de seu irmão Abel, em pecado e negação da graça de Deus. É quando Noé tem uma visão de que o dilúvio virá para purificar o mundo. A jornada dele e de sua família, que durará toda uma geração, é para cumprir o Plano Divino.

Aronofsky faz algumas mudanças cruciais em relação aos relatos da vida de Noé. Na Bíblia, no Gênese, Deus é uma presença constante, que se comunica diretamente com seu escolhido. Aqui, não. Deus é uma presença a ser sentida, que nunca se manifesta diretamente. O que faz com que as decisões de Noé sejam ainda baseadas em sua fé, na forte crença independente de se ter provas ou não da existência.

A mudança seguinte, que implica diretamente na primeira, é a que coloca os filhos de Noé, Sem, Cam e Jafé, vividos por Douglas Booth, Logan Lerman e Leo McHugh Carroll, sem possibilidade de deixar descendentes. No texto bíblico está explícito que todos tinham esposas que entraram juntas na arca. Por isso, ao testemunhar toda a maldade humana dos descendentes de Caim, Noé decide que o mundo não precisa mais de homens. O resultado final, considerando a forma misteriosa de Deus de agir, afirma Aronofsky, é que as decisões tomadas em Seu nome podem ser tão nefastas quanto às tomadas para negá-Lo. E, mais do que isso, é tudo uma questão de interpretação.

Quem encarna a negação divina é Tubal-cain, vivido por Ray Winstone. Ele é um Rei que insurge os homens contra Noé. E é interessante notar como a sua escolha, mesmo tendo tempo e recursos, é por armas e violência, quando poderia, ele mesmo, construir uma arca. Ainda assim, ele parece existir no filme mais por necessidade narrativa de um clímax, do que pelo valor simbólico intrínseco. Especialmente porque, apesar de ser um vegetariano que respeita a vida, Noé não hesita em matar outros homens – ainda que, contextualmente, sua família esteja sempre ameaçada.

Há uma necessidade, que parece partir do próprio Aronofsky, de fazer com que o “Noé” seja, se não realista, possível talvez. A Arca, por exemplo, se torna, então, um projeto de 10 anos, em que Noé é ajudado por seus filhos e pelos anjos caídos, os guardiões, que buscam redenção divina tanto quanto o próprio protagonista. O que também quer dizer que há a tentativa de ampliar aquele universo para algo mais mítico e fantástico do que o relato original propunha. Mas esse discurso se estende para além do diálogo com a Bíblia, proposto na superfície do filme.

Aronofsky tem a pretensão – bastante inglória – de tentar conciliar o discurso criacionista, de que Deus criou o mundo em sete dias, com o evolucionista, ao narrar o primeiro e mostrar o segundo. O recado é claro: entendamos, todos, que o texto bíblico é uma metáfora e sigamos adiante. E até funciona, superficialmente e (principalmente) esteticamente – que ele retoma com alguma graça dos seus tempos de influência da linguagem do videoclipe.

O resultado é um filme duro, cheio de lições melancólicas sobre a humanidade. E que, mesmo que tenha uma estética absolutamente bela, vem sem o arco-íris da aliança.

Publicado originalmente no Portal POP.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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