O Fim da Turnê

O Fim da Turnê

Isto É Água, transcrição e publicação de seu discurso para alunos que se formavam na Kenyon College, alçou David Foster Wallace ao patamar de guru moderno, para seu próprio horror. Sua fala clamava por mais empatia, argumentando que, do contrário, a alternativa ao individualismo massacrante contemporâneo era a morte. Essa conclusão é parte da angústia e das reflexões do escritor ao longo de sua vida. Seu suicídio no fim de 2008, resultado de uma longa batalha contra a depressão, colaborou para a viralização do texto, aumentando seu hype e o colocando em pé de igualdade com outras grandes obras da auto-ajuda semi-acidental, como Use Filtro Solar. Com sorte, porém, O Fim da Turnê (The End of the Tour, 2015) ajudará a mudar isso, ampliando a percepção do público sobre a visão de mundo de Wallace.

O filme começa com o também escritor David Lipsky (Jesse Eisenberg) recebendo a notícia do suicídio de Foster Wallace (Jason Segel). Isso o faz desenterrar os cassetes com a longa entrevista ocorrida quando do lançamento de Graça Infinita, o grande romance americano do final do século XX. É a conversa entre essas duas figuras que norteia o filme, logo abraçando o que deve ser o estilo narrativo mais americano de todos: o road movie.

A evocação do gênero não é aleatória. Boa parte da obra de Foster Wallace é baseada em uma dura reflexão sobre o que significa ser americano, no sentido “estadunidense” da palavra. Graça Infinita, livro que lhe tirou do anonimato, é seu opus maximus neste sentido. O romance trata da relação do norteamericano médio com os sistemas de entretenimento, as drogas alteradoras da percepção e a lógica do sucesso acima de tudo. Temas também centrais na conversa entre os dois Davids.

Para Foster Wallace tudo é vício. Ele não possui uma TV e tenta acessar seu email apenas na biblioteca pública. Evita beber e vive feliz em uma casa com quintal voltado para uma imensidão de neve branca. Ele precisou se retirar da equação para conseguir analisá-la, mas a armadilha do sucesso, em diversos sentidos, lhe insere novamente na dinâmica de consumo e entretenimento que causa tanto repulsa quanto fascínio. É isso, ao menos, o que ele deixa transparecer para Lipsky na entrevista.

Na superfície O Fim da Turnê se debruça sobre a relação de admiração e inveja de Lipsky – que fracassou ao lançar seu primeiro romance e “amarga” um emprego na Rolling Stone – para com Foster Wallace, que talvez tenha escrito o livro definitivo de sua geração e está sendo reconhecido por isso. A dinâmica das cenas filmadas por James Ponsold corrobora isso, fazendo questão de mostrar Lipsky no vazio lançamento de seu livro em Nova York e Foster Wallace lotando uma livraria em Minneapolis, Minnesota, em um contraste brutal (Lipsky é redimido da mesma forma ao final do filme). Um já chegou lá, e não sabe como lidar com isso; o outro quer chegar lá, e não sabe como.

A relação entre estas duas figuras é eventualmente mostrada de forma mais complexa. Há uma forte retroalimentação entre eles: Lipsky olha Foster Wallace vendo o mundo e sente inveja desse olhar, que é causa e consequência de reflexões apaixonadas sobre o que significa ser americano e – algo quase inédito – saber estar inserido profundamente neste contexto (quando McDonalds, por exemplo, se torna uma boa refeição). Mas o olhar de Foster Wallace ao mesmo tempo aliena Lipsky deste contexto cultural que ele tanto analisa e admira.

Por isso o olhar de Foster Wallace para Lipsky é da mesma natureza. Os dois são igualmente inteligentes e observadores afiados da cultura pop – concordam sobre como Duro de Matar (Die Hard, 1988), de John McTiernan é um filme incrível e sobre a importância de Alanis Morisette, uma cantora desmistificada. Mas Lipsky consegue conversar com mulheres, ter uma (duas?) namorada e viver em Nova York sem se sentir estranho, algo impossível para Foster Wallace. Todas essas coisas, tão naturais na vida de um, são o catalisador da angústia do outro.

Esse desencaixe do mundo é, também, causa e consequência da depressão que levaria David Foster Wallace a tirar sua própria vida. Ele sabia que a única resposta possível está na conexão entre as pessoas – o que é mais profundo e complexo do que pregam os manuais de regras de conduta que são os best sellers de auto-ajuda. De alguma forma, postula o filme de Ponsold, Lipsky apreendeu esta lição ao longo dos cinco dias que passaram juntos em meados da década de 90 no frio meio oeste estadunidense.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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