Em 2018 a plataforma de streaming traz novas produções de Alfonso Cuarón, irmãos Coen e até mesmo Orson Welles para se firmar como produtora de cinema de qualidades
Em 2017 a vencedora moral do Festival de Cinema de Cannes foi a Netflix. A empresa de streaming emplacou duas produções na mostra competitiva: Okja, de Bong Joon-ho, e Os Meyerowitz: Família Não Se Escolhe, de Noah Baumbach – uma ficção científica humanística e anticapitalista sobre nossa relação com a alimentação e consumo e uma comédia dramática familiar encabeçada por ninguém menos que Adam Sandler e Ben Stiller (absolutamente inspirados, diga-se). Não por acaso, estes são dois dos melhores filmes da temporada passada. Três, se contarmos My Happy Family, de Nana Ekvtimishvili e Simon Groß, que não foi para a costa francesa, mas é um dos grandes destaques de qualidade do catálogo da plataforma. O exame existencial sobre as relações sociais da Georgia (o país) talvez seja o melhor filmes do ano passado, inclusive.
Três ou quatro filmes de qualidade, em um universo de milhares de títulos, mesmo entre as produções próprias, parece pouco. O que conta aqui, porém, é o investimento em promoção, daí o batismo de fogo de passar pelo crivo dos festivais de prestígio mundo afora. Daí, também, parte do problema arranjado pelo Festival de Cannes ao se recusar a exibir filmes da Netflix em sua última edição (envolve uma arbitrariedade sobre a janela de tempo entre o festival francês e a disponibilidade nos cinemas ou na plataforma de streaming). Considerando o falatório da crítica sobre os títulos, exibidos em outras mostras e festivais, Cannes se apequenou.
Estes são os filmes que começam a chegar agora ao catálogo da Netflix. Produções que entram naquela categoria fugidia do que pode ser considerado “cinema de arte”, que hoje significa qualquer pretensão que não seja o puro entretenimento – não que haja algo de errado com isso. Nos próximos meses, filmes como Roma, de Alfonso Cuarón, diretor vencedor do Oscar por Gravidade; A Balada de Buster Scruggs, dos irmãos Joel e Ethan Coen de Onde Os Fracos Não Têm Vez; e principalmente The Other Side of the Wind, filme inacabado de ninguém menos que Orson Welles e finalizado por Peter Bogdanovich, ele próprio um diretor seminal da Nova Hollywood.
Fora o que já está disponível dentre os lançamentos de 2018. A Netflix bancou Apostle, de Gareth Evans, diretor dos dois cultuados Operação Invasão; 22 de Julho, de Paul Greengrass, diretor da Trilogia Bourne; e Noite e Lobos, de Jeremy Saulnier, aclamado por Blue Ruin e A Sala Verde. Podem não ser os filmes mais notáveis destes realizadores, mas é importante que eles tenham acesso ao orçamento para fazer seus filmes, coisa que não estava acontecendo com o esquemão dos estúdios.
Para coroar, enquanto este texto é escrito, a Netflix aprovou a produção de Pinocchio, uma versão em stop motion que a anos é um projeto do coração de Guillermo del Toro, grande vencedor do Oscar de 2018 com seu belo e poético A Forma da Água.
O Filme Médio
O mega-produtor Jerry Bruckheimer, cuja impressão digital aparece em títulos como Top Gun – Ases Indomáveis ou Piratas do Caribe, para ficar apenas na ponta do iceberg, disse em 2013, em uma declaração reproduzida pelo Den of Geek: “é difícil fazer um filme de 40 milhões de dólares. Porque não vão bem fora dos EUA”. Essa mentalidade mostra como o filme de orçamento mediano perdeu espaço desde o começo dos anos 2000, com os principais estúdios focando em produções de grande escala que são circundadas por um circuito de pequenos filmes independentes – cujo Festival de Cinema de Sundance se tornou a Meca.
De um lado temos os planos ousados, como o da Marvel que envolve planejamento de vários anos e vários filmes e séries interconectados, cuja fruição ideal só se ativa ao consumir todos os produtos. Produções imensas, elencos multimilionários, diferentes cenários e sequências de ação mais e mais elaboradas que fazem multidões correrem para os cinemas e (principalmente) comprar todo tipo de brinquedo e memorabília disponíveis. É possível argumentar que a “fórmula” dá sinais de esgotamento, mas ainda é o modelo que as concorrentes lutam para alcançar e sustentar.
De outro temos as micro-produções, com orçamentos modestos. São filmes intimistas de diretores autorais que abraçam e subvertem o que Hollywood sempre fez de melhor: cinema de gênero. Pense nas produções de horror da Blumhouse, como Atividade Paranormal ou Uma Noite de Crime, ou mesmo títulos de mais qualidade, como o impactante Corra, de Jordan Peele, ou o aguardado Infiltrado na Klan, de Spike Lee. Pense também nos pequenos filmes existenciais, de duas pessoas conversando enquanto andam pelas ruas de Nova York. Dificilmente os orçamentos ultrapassam a casa dos 10 milhões de dólares.
Por boa parte das primeiras duas décadas do Século XXI Hollywood se tornou incapaz de produzir algo que estivesse entre estes dois pólos opostos. É justamente onde a Netflix parece mirar, dando acesso a orçamento suficiente para que o filme tenha a aparência prevista pelo cineasta e, principalmente, uma plataforma de acesso, garantindo que o filme seja visto pelo maior número de pessoas possível. A plataforma de streaming não é a única responsável pelo retorno do filme de orçamento médio. Filmes como A Chegada, de Denis Villeneuve, ou Um Lugar Silencioso, de John Krasinski, foram produzidos com 47 e 17 milhões de dólares, respectivamente. Dinheiro suficiente para que os diretores alcançassem o visual pretendido, sem que precisassem comprometer as ideias que tinham para seus filmes.
Expectativa
Roma, de Alfonso Cuarón, parece ser o exemplo mais bem acabado desta proposta. O diretor veio dos impressionantes Filhos da Esperança e Gravidade, filmes que unem apuro técnico – com planos-sequência que im pressionam pela inventividade – à reflexão existencial. O primeiro é uma fábula moral disfarçada de distopia apocalíptica, enquanto o segundo conecta as duas pontas do ciclo da vida, nascimento, morte e nascimento, em uma saga espacial.
Cuarón quis, então, voltar ao seu México natal e contar uma pequena grande história sobre uma família nos anos 70. Seu orçamento: 15 milhões de dólares, todo gasto no apuro visual que é possível notar pelos trailers (ajuda não precisar pagar milhões para atrizes famosas como Julianne Moore ou Sandra Bullock). Como resultado, o prêmio maior do Festival de Veneza e uma das estreias mais aguardadas no catálogo da Netflix que permitirá a assinantes do mundo todo ver o filme simultaneamente.
É importante notar que, neste caso, a Netflix atua “apenas” como distribuidora, levando aos festivais e depois disponibilizando o filme em sua plataforma digital. Ao mesmo tempo, seu envolvimento com a produção começa desde antes das filmagens. Suas garantias na distribuição, com investimento pesado em publicidade e lobby para chegar aos Festivais de renome, tornam a aposta das produtoras mais sólida, com alto grau de retorno. Cabe a ressalva que muitos dos grandes estúdios trabalham com o mesmo sistema, não é uma exclusividade da Netflix.
Este mesmo esquema vale para A Balada de Buster Scruggs, dos Irmãos Coen. A perspectiva é de um faroeste satírico, cheia dos bons diálogos e atuações peculiares que são as marcas da dupla de diretores. As prévias sugerem algo como a abordagem humorística de Queime Depois de Ler, trocando as trapalhadas da trama de espionagem pela colonização do Oeste norte-americano. O orçamento ainda não foi detalhado, em parte por que o projeto nasceu como uma minissérie em seis partes, mas foi readequado como filme, o que influi na conta final, mas a questão é que não deve ser mais do que os 40 milhões de dólares mencionados por Bruckheimer.
Crítica
O mais importante da Netflix abraçar cineastas consagrados está em reduzir o ranço elitista de boa parte da crítica anglófona, que acostumada se ver porta-voz do consumo cultural tem dificuldade de lidar com opiniões dissonantes vindas do mundo todo. Um exemplo claro é Máquina de Guerra, de David Michôd, ácida sátira política com uma atuação inspirada e comprometida de Brad Pitt, mas que não teve o resultado esperado. Michôd, porém, é um diretor que está ainda em seu terceiro longa, é fácil reduzir seus méritos (ainda que óbvios) a acidentes fortuitos. Não dá para fazer o mesmo com os Irmãos Coen ou Cuarón. Certamente não dá para fazer com Orson Welles, independente do resultado do trabalho de Bogdanovich na montagem final.
Os críticos estadunidenses (e mesmo alguns britânicos)desenvolveram uma postura de má-vontade com títulos distribuídos pela Netflix em parte por não se verem na vanguarda da opinião. Mesmo em filmes de méritos óbvios, como Beasts of No Nation, de Cary Joji Fukunaga, brutal retrato da violência nas guerras africanas, que chegam a recrutar crianças como soldados, havia certa resistência em encarar suas qualidades e discutir suas proposições. A questão da democratização do acesso, então, sequer passou pela maioria dos textos, apontando em parte o elitismo patente.
Em um país como o Brasil, em que as salas de cinema se concentram nos shoppings dos grandes centros, com títulos cada vez mais voltados para o puro entretenimento (e, novamente, não há nada de errado com isso), é no mínimo interessante pensar na possibilidade de acesso em lugares remotos, desde que haja conexão com a internet, claro. Um jovem no interior do Paraná poderá ter acesso ao mais novo filme dos Irmãos Coen, ou de Alfonso Cuarón, ou ainda de de Orson Welles ao mesmo tempo em que um velho crítico de Nova York. O mundo é um lugar um pouco melhor por causa disso.
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Texto publicado originalmente na edição impressa da Gazeta do Povo.
que certamente se vai continuar a falar, quando se falar das produ es e das estrat gias do Netflix para rivalizar com os grandes est dios da ind stria norte-americana do cinema.