Ferguson, Missouri, 2014. Michael Brown, um jovem negro de 18 anos, desarmado e sem nenhum antecedente criminal, é assassinado por um policial. Oakland, Califórnia, 2009. Oscar Grant, um jovem negro, é algemado com o rosto no chão e, ainda assim, é baleado por um policial. Mesmo 50 anos depois do movimento pelos direitos civis, que buscavam igualdade jurídica para negros nos Estados Unidos, as questões raciais seguem no centro do debate social e político norte-americano (e brasileiro, em diversos sentidos, convenhamos). “Straight Outta Compton: A História do N.W.A.” é sobre um dos pontos focais dessa história: o surgimento do N.W.A., grupo de hip-hop que levou a realidade das ruas para suas músicas, atraindo ódio e simpatia do resto do mundo em igual medida.
Quando a vinheta da Universal aparece, já ouvimos o áudio da polícia, marca inequívoca de um vindouro confronto. Corta para uma das muitas ruas de Compton, violento subúrbio negro de Los Angeles. Easy-E (Jason Mitchell) para o carro e abre o porta-malas. Do buraco de um dos alto-falantes, ele tira uma arma e um saco de cocaína. É uma imagem poderosa, que escancara a relação íntima que há, para eles, entre música, drogas e violência, especialmente, a policial. Não será a única, porém.
Essa é a raiz do N.W.A. (negros de atitude, na tradução). A violência vivida por eles no dia a dia é o centro das letras de Ice Cube (O’Shea Jackson Jr.) e MC Ren (Aldis Hodge), das batidas de Dr. Dre (Corey Hawkins) e DJ Yella (Neil Brown Jr.) e da maneira raivosa com que Easy-E canta/declama/rima. “Straight Outta Compton” reforça isso ao mostrar, rápida e elegantemente, a diferença entre a vida de Compton e dos subúrbios brancos de classe média. Ou, já durante a fama crescente, a forte pressão do governo para proibir a execução da icônica “Fuck the Police”, canção provocativa e polêmica que escancara o conflito.
A música, a arte, é a única escapatória que eles conseguem vislumbrar de uma vida de crimes. Vida curta, portanto. Ainda que fique bem claro que o modo de vida do gueto não é exatamente abandonado quando eles alcançam a fama. A cena do hotel, em que um homem aparece armado e é afugentado, porque eles próprios estão com armas suficientes para abastecer uma pequena milícia, é exemplar. A forma como Suge Knight (R. Marcos Taylor), figura que ainda hoje se envolve em negócios pouco claros, lida com contratos é mais ainda.
O dinheiro, a fama e a ganância logo os colocam uns contra os outros, reduzindo a força de suas letras ao focar no contra-ataque. O fato de Jerry Heller (Paul Giamatti), o empresário branco que os coloca em contato com as grandes gravadoras, ser colocado no centro do desmantelamento do N.W.A. é para reforçar a mensagem de que a voz do oprimido só deve ficar pública se servir a um interesse mercadológico. Antes mesmo de causarem um impacto real, precisam ser voltadas umas contra as outras. É o ciclo da violência se perpetuando. É Easy-E se perguntando por que ele precisa ser melhor do que os outros e não investir na vingança.
Então, quatro policiais resolvem que Rodney King, um homem negro, deveria apanhar até ficar à beira da morte, tomando para si a responsabilidade de julgar e punir. Seria apenas mais um entre tantos casos de abuso de força e violência policial contra negros, caso a ação não tivesse sido filmada. A absolvição dos homens da lei fez Los Angeles queimar e a mesma realidade que os jovens artistas fizeram os EUA engolir bateu em suas portas. Vozes dissonantes se atacando não alcançaram nada perto do que eles poderiam juntos.
Mesmo o momento mais melodramático e errático de “Straight Outta Compton” é usado para sublinhar a questão racial. Logo no começo, Dre é chamado para resolver uma questão familiar do lado de fora do estúdio onde gravam o primeiro disco do N.W.A. Mas isso é apenas uma desculpa do roteiro para colocar todo o grupo de pé na rua em um bairro bacana, o que leva, imediatamente, a uma batida policial. Todo o filme caminha nesta corda bamba, mas sem nunca se deixar cair.
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Publicado originalmente no Portal POP.