“Demolidor” – Crítica da primeira temporada

Mesmo “Capitão América 2: O Soldado Invernal”, o mais adulto dos filmes da Marvel até agora, é voltado para adolescentes. A relevência de sua temática (a legitimidade de agências de vigilância se voltarem para o povo americano) não esconde o tom cartunesco das lutas coreografadas ou a bidimensionalidade do personagem de Chris Evans. Em “Agents of S.H.I.E.L.D.” e “Agent Carter” (ainda que este último tenha bons momentos e faça uma apropriada discussão sobre gênero), seus produtos para a televisão, não foram muito além. Até agora.

“Demolidor” é o primeiro produto audiovisual para adultos da Marvel, o que já era de se esperar, considerando que sua opção para tocar a produção foi a Netflix e não a ABC que já vinha desenvolvendo “Agents of S.H.I.E.L.D.” e “Agent Carter”. A empresa que criou “House of Cards” não se importa em produzir cenas que desafiem o gosto do público médio, coisa que é mais do que reafirmada na história do mais trágico dos heróis da Casa das Ideias. Daí parte sua força.

A série começa com o acidente que tirou a visão de um ainda jovem Matt Murdock, interpretado na infância por Skylar Gaertner e na fase adulta por Charlie Cox. Ao longo dos 13 episódios, em uma série de flashbacks, acompanhamos sua relação com o pai, o boxeador Jack “Batalhador” Murdock, e, em seguida, com Stick, seu mentor no “mundo de chamas” que se torna sua percepção de tudo que acontece a sua volta depois de ficar cego. Mas “Demolidor” não é sobre isso.

Logo depois do acidente temos um vislumbre do que irá marcar a história. Matt, já adulto, confessa para um padre, honrando sua ascendência irlandesa. Ele precisa saber se há chance de salvação para sua alma depois de fazer o que pensa que tem que fazer. Se depois de matar alguém ele poderá ser salvo. Mesmo sabendo que há um bem maior em seus atos. A pergunta seguinte, tão cruel quanto esta primeira, é: ele está disposto a sacrificar sua alma em nome um bem maior?

O bem maior, no caso, é salvar Hell’s Kitchen, tradicional bairro de Nova York que sofre uma investida agressiva orquestrada por Wilson Fisk, vivido por Vincent D’Onofrio. O valor do metro quadrado caiu muito depois da Batalha de Nova York, título que os eventos ocorridos em “Os Vingadores” recebeu dentro do Universo Marvel. Por isso Fisk organizou diferentes gangues que controlam o submundo da cidade em uma grande organização. Sua ideia é retirar os pobres e imigrantes que ocuparam os prédios, demolir tudo e construir condomínios de luxo para os ricos e bem nascidos.

É neste ponto que começa o estudo de personagem que norteia o conflito central da série. Logo fica claro que Fisk e Murdock querem a mesma coisa. Salvar Hell’s Kitchen, sem se preocupar com os limites legais para alcançar seus objetivos. Um usa uma máscara e outro coordena os sindicatos criminosos. A questão é como. Da mesma forma eles também escondem suas habilidades e nutrem um profundo complexo de Édipo, com relações bastante conflituosas em relação aos seus pais. O primeiro olha apenas para o lugar em detrimento do povo, enquanto o segundo entende que é o povo que faz um lugar. Mas a principal diferença está na disponibilidade para tirar uma vida.

A profundidade das questões morais é respaldada pelo design de produção. Desde a paleta de cores expressionista, que faz mesclas de tons de amarelo, azul e vermelho, gerando um neo-noir que remete diretamente à criativa fase de Frank Miller com o Demolidor nos quadrinhos, até os ousados movimentos de câmera que bebem diretamente de novos clássicos orientais do cinema de ação como “Operação Invasão” e “Oldboy”. O resultado são cenas de ação muito superiores ao que a TV faz em média com um dos pontos altos no plano-sequência de luta do final do segundo episódio.

A trama também parece remeter ao melhor da teledramaturgia contemporânea, com o final de “The Wire” surgindo em espírito no fechamento do primeiro episódio. Mas onde a maior série policial da HBO indicava a permanência, a frustração de entender que nada muda, “Demolidor” quer apontar que as coisas podem ser diferentes. Esta é, afinal, uma série de super-heróis da Marvel e por mais sangue, violência e outros temas adultos que tenha (e são muitos, acredite), ainda há a esperança de um futuro melhor. Senão não valeria a pena vestir a máscara, para começo de conversa.

Publicado originalmente no Portal POP.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

1 ComentárioDeixe um comentário

  • […] Demolidor levou o Universo Marvel ao rés do chão. É um duro comentário sobre o significado de viver espremido por interesses de mercado que buscam se aproveitar de um desastre para lucrar. Ao mesmo tempo, e com efeito bem menor, Agente Carter foi a primeira vez que a Marvel se preocupou em colocar uma mulher no centro da trama, trabalhando o discurso de igualdade, com a protagonista tendo que se provar melhor do que os homens em um mundo estupidamente machista. Jessica Jones, mais novo resultado da parceria da Casa das Ideias com a Netflix, vai ainda mais adiante nesses dois aspectos, se tornando um marco do audiovisual comercial. […]

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