Jessica Jones – Primeira Temporada

Jessica Jones

Demolidor levou o Universo Marvel ao rés do chão. É um duro comentário sobre o significado de viver espremido por interesses de mercado que buscam se aproveitar de um desastre para lucrar. Ao mesmo tempo, e com efeito bem menor, Agente Carter foi a primeira vez que a Marvel se preocupou em colocar uma mulher no centro da trama, trabalhando o discurso de igualdade, com a protagonista tendo que se provar melhor do que os homens em um mundo estupidamente machista. Jessica Jones, mais novo resultado da parceria da Casa das Ideias com a Netflix, vai ainda mais adiante nesses dois aspectos, se tornando um marco do audiovisual comercial.

Veja: Agente Carter é um belo exemplo de narrativa que busca trabalhar a questão da desigualdade. Mas coloca Peggy Carter (Hayley Atwell) como uma única mulher (muito) capaz em diversos ambientes dominados por homens. Apesar de ter um currículo exemplar e ser muito mais eficiente, bem treinada e experiente que seus colegas, ela é tratada como uma secretária de luxo, precisando trabalhar duro para ser sempre melhor do que todos a sua volta. E nem poderia ser diferente, afinal a série se passa nos anos 50, última grande década do machismo ocidental. Mesmo assim, é um padrão que vemos ser repetido mesmo em grandes obras progressistas em relação às questões de gênero.

Jessica Jones vai adiante ao colocar Jessica (Krysten Ritter) em um mundo cheio de mulheres poderosas. Se precisa de uma advogada, tem Jeri Hogarth (Carrie Anne-Moss); se precisa de uma médica, tem Wendy Ross-Hogarth (Robin Weigert); sua melhor amiga, Trish Walker (Rachael Taylor) é uma radialista competente e admirada; e mesmo a maior vítima que coloca a relutante heroína no centro da trama, Hope Shlottman (Erin Moriarty), é uma atleta de destaque e orgulho dos pais. Ao mesmo tempo, todos os homens, com exceção de Luke Cage (Mike Coulter) e do vilão Kilgrave (David Tanent), são perdedores e bobalhões que em maior ou menor medida só estão ali para fins narrativos. É uma inversão bem-vinda e devidamente incômoda para quem nunca percebeu como as mulheres são retratadas usualmente na ficção.

No meio de tantas mulheres de personalidades interessantes, cheias de defeitos e qualidades, medos e anseios (personagens bem escritas, afinal), Jessica é a mais incrível. Forte e poderosa, se sente vulnerável, sofrendo de estresse pós-traumático, se afundando em bebida para conseguir dormir e vomitando na rua quando sente nojo de si mesma. Sua fragilidade emocional não impede que ela seja retratada como uma super-mulher. Em diversos sentidos. Além de poderosa, ela também é dona de si e de seu corpo, não tendo problemas em fazer sexo. Bastante sexo. Quando está afim. Heroína pé na porta, sem pedir licença.

Tudo é dolorosamente metafórico em Jessica Jones, mas dois aspectos chamam muito a atenção. O primeiro, e mais óbvio, é a relação entre Jessica e Kilgrave, que se torna o maior vilão anti-mulher desde Imortan Joe de Mad Max: Estrada da Fúria. Afinal, qual a única fraqueza de uma mulher? Se deixar convencer que precisa de um homem para ser feliz. Por isso, não importa o quão forte a heroína seja, seu ponto fraco, muito explorado por seu antagonista, está em sua cabeça, em se sentir obrigada a aceitar as ordens de um homem.

O segundo, mais discreto, é sobre a armadilha da visibilidade. Jessica é uma detetive particular (“olho privado”, na expressão em inglês “private eye”). Boa parte de seu trabalho envolve ver sem ser vista. Por isso, ela entra em pânico quando se descobre vigiada por Kilgrave, refletindo a paranoia criada pelo trauma de ter sido abusada. Todo o mundo a vigia e julga. Incluindo nós, telespectadores. Por isso, especialmente nas cenas nas ruas de Nova York, a câmera a filma de longe, do outro lado da rua, se escondendo dela, simulando esta vigilância constante.

O desenvolvimento direto disso é justamente o embate entre público e privado em relação ao corpo feminino. Jessica se sente invadida, alijada de sua privacidade, o que é particularmente brutal em uma cidade tão cosmopolita quanto Nova York, onde as pessoas vão para se esconder na multidão. E caso essa metáfora não tenha ficado clara, enquanto discurso de gênero, Jessica Jones a reforça com a relevação da opinião pública sobre o caso de Hope, obrigada a matar seus pais por Kilgrave. É o “se não queria ser estuprada, não deveria ter saído de minissaia” das séries de super-herói.

O que nos devolve para a construção que Tennant faz para Kilgrave. Ninguém têm livre arbítrio depois de ouvir uma ordem dele. Todos os seus impulsos levam para a obediência. Ainda assim, o vilão não se sente responsável pelos atos cometidos sob seu comando. Mais explicitamente, em uma das mais brutais cenas do ponto de vista dramático, ele se recusa a entender que usar seus poderes para obrigar alguém a fazer sexo é a definição clara de estupro. E não há infância triste que justifique, ou mesmo explique, isso.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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