Jason Bourne

Jason Bourne

O hiato de nove anos entre O Ultimato Bourne (The Bourne Ultimatum, 2007), derradeiro filme da trilogia original, e este Jason Bourne (2016) foi preenchido por mudanças estruturais na organização geopolítica. Se Jason Bourne (Matt Damon) era o espião possível do pós 11/09 agora ele procura encontrar um lugar em um mundo pós Snowden e WikiLeaks. Vigilância e proteção de informações, subtemas caros ao cinema de espionagem, ganham novas dimensões. Não é mais a falta de memória e a busca pela própria identidade que movem o personagem. É a busca pela verdade em sua história pessoal, que se traduz como metáfora nas mentiras que movem o mundo.

A discussão é, portanto, sobre o que significa identidade. Relembrar já não basta para o assassino. Suas ações precisam ter sentido, o que só é possível através da motivação que o faz seguir em frente. Há o que ele esqueceu e há o que ele nunca soube. Saber o que ele é e o papel que escolheu ser – questão central na trilogia original – se torna secundário diante de saber os porquês. Quais foram os mecanismos que fizeram David Webb se tornar Jason Bourne? E, talvez ainda mais importante, saber se foi manipulado para tomar essas decisões importa no grande esquema das coisas?

Dentro da trama a questão é tratada através de uma invasão aos servidores da CIA que revelam detalhes ainda desconhecidos do programa Treadstone, responsável por transformar o cadete David Webb em Jason Bourne. Os segredos remetem ao passado não apenas de Bourne como também de seu pai, implicando que este seria bem mais do que um mero analista da agência central de inteligência americana. Ao reaparecer para tentar desvendar o mistério de seu passado ele volta a se tornar uma ameaça, o que coloca a carreirista Heather Lee (Alicia Vikander) e seu superior, Robert Dewey (Tommy Lee Jones), além de um novo assassino (Vincent Cassell), em seu encalço.

A relação com a vigilância se aprofunda na segunda metade do filme, quando a trajetória de Bourne é atravessada pelo lançamento de um novo serviço social. Deep Dream, uma combinação de Google, Facebook e Apple, se tornará total e totalizante. No universo (justificadamente) paranoico de Greengrass a coleta de informações via invasão de privacidade não têm apenas fins comerciais. A empresa é financiada pela CIA, que irá sim espionar os usuários, independente de Aaron Kalloor (Riz Ahmed), o fundador, dizer o contrário.

O interesse maior, porém, é em como esse discurso se traduz em metáfora para as relações internacionais contemporâneas – o mundo pós WikiLeaks, Julian Assange e Edward Snowden que Damon e o diretor Paul Greengrass tanto falaram que justificaria o retorno do personagem de Robert Ludlum. Ao tentar entender o que aconteceu com sua história e tomar uma decisão diante das convulsões políticas, Bourne questiona a legitimidade das ações dos governos que agem ilicitamente, por baixo dos panos, em nome de um bem comum que nunca fica claro se é ou não efetivo.

O fato dele ter se tornado Bourne, uma máquina de matar, é secundário em relação ao que e como ele se tornou o que é. Jason Bourne nega a máxima de Maquiavel, argumentando que fins não podem justificar os meios, afinal de contas. Culpar o vazamento de informações pela instabilidade política é hipocrisia, já que os governos poderiam ter simplesmente agido de outra forma. Hipocrisia maior, considerando o interesse deste mesmo governo nas informações pessoais dos usuários da Deep Dream. Assim Greengrass dá o passo que os irmãos Nolan se recusaram a dar em O Cavaleiro das Trevas Ressurge (The Dark Knight Rises, 2012): a paz construída por mentiras e enganos é frágil demais — e portanto não é válida.

A dupla dimensão de Jason Bourne, que é tanto filme de ação quanto comentário político, ganha reverberações no já tradicional estilo de filmar de Greengrass. A câmera na mão e a edição frenética do co-roteirista Christopher Rouse servem tanto ao mergulho na trama quanto reflexo da confusão mental do próprio Bourne. As cenas de perseguição, luta e tiroteio (ou todas essas combinadas), assim como na trilogia original, atendem ao interesse direto dos ávidos por blockbusters ao mesmo tempo em que distanciam esteticamente a obra de um típico filme-pipoca. Há explosão de sentidos onde deveria haver didatismo se a ideia fosse meramente agradar o público.

Jason Bourne é, afinal, um desafio estético narrativo, oferecendo questões complexas de serem respondidas no lugar de respostas simples. O mundo de 2016 é ainda mais maluco que o de 2002 que viu o lançamento de A Identidade Bourne (The Bourne Indentity). Greengrass e Damon entenderam que não precisamos de um herói que nos console ou represente. Precisamos de um herói que nos coloque em cheque.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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