O Abutre

O Abutre

A primeira coisa que salta aos olhos em O Abutre é o mergulho dado por Jake Gyllenhaal em seu personagem, Louis “Lou” Bloom, uma figura que abraça a perversão da lógica do sonho americano como pouco se viu no cinema. Isso também se estende em menor escala para Rene Russo, que na pele da editora de TV Nina Romina fica deslumbrada com as imagens da violência da madrugada de Los Angeles capturadas por Bloom e especialmente com a audiência vinda à reboque. Logo fica claro, porém, que isso é apenas a superfície das relações que o filme pretende estabelecer.

Começando com as falas de Lou, cuja maioria parece ter sido retirada diretamente de manuais de auto-ajuda corporativa que ele leu pela internet — método através do qual diz ter aprendido a maior parte de suas, digamos, habilidades. É difícil saber se é a personalidade dele que se amolda aos ensinamentos da meritocracia liberal ou se foi através deles que Bloom encontrou vasão para sua psicose. Seja qual for a possibilidade, ele usa essas palavras como mantras e vive sua vida como se estivesse em uma entrevista de emprego perpétua.

Isso acontece porque de certa forma sua vida é de fato uma entrevista de emprego perpétua. E cada encontro é uma oportunidade de, no começo, conseguir trabalho ou, mais adiante, aumentar suas chances em seu crescente negócio como cinegrafista de acidentes e fatalidades da noite de LA. Por acreditar que deve ter tudo o que quer ter, Bloom logo começa a ultrapassar as barreiras policiais e a alterar os cenários dos crimes e assassinatos. No começo são apenas pequenas modificações estéticas, mas ele logo começa a trabalhar na narrativa dos acontecimentos. E é aí que o filme começa a se tornar uma espécie de épico psicológico.

Todo esse cenário é uma oportunidade para o diretor estreante e roteirista veterano Dan Gilroy mergulhar profundamente na mente americana. Para começar, Lou é alguém que precisa criar oportunidades quando se vê em meio a uma crise econômica, como pregam os manuais que ele tanto parafraseia. E sua opção de carreira é explorar uma fonte inexaurível de renda, ou seja, o misto de horror e fascinação que a violência causa na população, causa principal da sensação favorita deles: a paranoia.

Para isso o personagem escolhe a TV, que usa suas imagens para enojar e deslumbrar o público, tornando-o mais e mais amedrontado na mesma medida em que não consegue se desligar do que está vendo. E note como simplesmente não há informação nos noticiários comandados por Nina, mas sim a pura e banal manipulação do sentimento dos espectadores. O que inclusive faz com que O Abutre faça uma curiosa aproximação com Tudo Por Um Furo, a hilária continuação de O Âncora.

As boas decisões de Gilroy não ficam apenas na escolha e direção de atores e no roteiro. Ele mostra, nesse seu primeiro trabalho como diretor, um apuro visual no mínimo brilhante. Basta ver a forma como ele posiciona Lou em sua própria casa durante o dia, sempre pelos cantos, na sombra, usando a forte luz do Sol californiano para realçar ainda mais as partes escuras. O que torna o personagem uma verdadeira “criatura da noite”, o que seria uma tradução mais literal para Nightcrawler do título original (ainda que “abutre” seja um dos nomes para os jornalistas que varam as madrugadas em busca das notícias policiais no Brasil e, por isso, uma tradução bem adequada, além de fazer uma precisa aproximação com o clássico A Montanha dos 7 Abutres).

Mas não é apenas uma questão de posicionamento de câmera, luz e sombra, apesar disso ser fundamental. É também sobre como isso dialoga com a interpretação de Gyllenhaal, cuja magreza, fruto de uma dieta específica para o personagem, faz saltar seus grandes olhos transformando-o em uma criatura desenhada pela evolução para sobreviver à noite. O cabelo preto penteado para trás e a jaqueta escura completam a caracterização.

Não é exagero comprar O Abutre com Taxi Driver, o clássico de Martin Scorsese que investigou a violência das ruas usando o estresse pós-traumático da guerra do Vietnam como catalizador para a loucura do personagem central. A comparação não é injusta para nenhum dos dois. Mas o filme de Gilroy diz respeito ao nosso tempo. É sobre como um desajustado se encaixa perfeitamente em um mundo tão torto quanto ele próprio. Daí sua força.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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