O desperdício de “Peter Pan”

O desperdício de “Peter Pan”

Há um momento em que os grandes estúdios chegam a um ponto de saturação em relação a um gênero, permitindo que cineastas autorais tomem as rédeas e o pervertam. Aconteceu com o cinema de vampiro, que alcançou esse ponto em “Crepúsculo”, sendo retrabalhado depois com Jim Jarmush e seu belo e poético “Amantes Eternos”. Com os épicos de fantasia que dominaram os cinemas nos últimos anos aconteceu o mesmo. Depois de vários títulos, como “Branca de Neve e o Caçador”, “Alice no País das Maravilhas” ou mesmo “A Garota da Capa Vermelha”, pensava-se que o ponto de virada viria com este “Peter Pan”, dirigido por Joe Wright. Mas ainda não foi desta vez.

Wright não é exatamente um diretor indepentende como o já citado Jarmush, que possui um estilo facilmente indetificável e uma mão pesada na forma de conduzir seus filmes. Mas seus trabalhos possuem uma leveza poética que o colocam muito acima da média hollywoodiana. Exemplos disso são seus dois primeiros filmes, “Orgulho e Preconceito” e “Desejo e Reparação”, que o levaram à sua obra-prima, “Anna Karenina” – todos dramas de época com um visual deslumbrante e atuações irrepreensíveis. Por isso, o estranhamento com a, digamos, falta de tempero de “Peter Pan”.

A ideia do filme é mostrar a origem do icônico personagem criado por J. M. Barrie, como ele chegou à Terra do Nunca e o que faz dele essa mistura de criança e sátiro (de onde se deriva o “Pan” do seu sobrenome). Nesta versão, descobrimos que ele é um órfão que se vê sequestrado pelos piratas do Capitão Barba Negra (Hugh Jackman) para minerar uma substância conhecida como pixum, o pó das fadas. Logo fica claro que ele não está ali por acaso, já que sua chegada envolve uma antiga profecia que libertaria os nativos e as fadas da tirania.

O que o roteiro de Jason Fuchs faz é transformar Peter Pan (Levi Miller), um personagem que funciona por ser etéreo, por encarnar uma espécie de força da natureza, e relegar-lhe uma origem mundana, simplória. Ele é mais um herói previsto em uma profecia, como Luke Skywalker ou Harry Potter, repetindo a leitura superficial da obra original feita em “Alice no País das Maravilhas”. Toda sua força é esvaziada para cumprir o que parecem pré-requisitos obrigatórios neste subgênero.

Há qualidades, porém. Começando por Jackman, que cria um Barba Negra tão divertido quanto ameaçador, figura máxima de autoridade que será imediatamente confrontada por Peter. É quando podemos ver lampejos do personagem que já conhecemos, sempre desafiador e iconoclasta, como a infância costuma ser. Por isso, a melhor parte de todo esse “Peter Pan” é seu arco inicial, que mostra o relacionamento entre Peter, seu melhor amigo e as terríveis freiras que comandam o orfanato onde ele vive.

Aqui e ali, ainda vemos a mão de Wright em belas soluções visuais, como nas duas sequências de flashback, no toco da árvore e no lago das sereias. Ou mesmo na forma como os integrantes da tribo da Princesa Tigrinha (Rooney Mara) são mortos. Ou no uso de canções mais ou menos contemporâneas (“Smels like Teen Spirit”, do Nirvana, e “Blitzkrieg Bop”, do Ramones), ajudando a indicar como a Terra do Nunca opera meio que fora do tempo real. São pequenos momentos quase tão inventivos quanto a ideia de colocar alguém com um espelho e um sino atrás da plateia para criar a Sininho, como foi feito na peça original de Barrie.

“Peter Pan”, a peça, é referenciada à exaustão. Peter ouve “tenha pensamentos felizes” de Barba Negra e “morrer é a maior das aventuras” do chefe da tribo, por exemplo. Mas as melhores piscadas de olho para o público ficam, talvez, com o futuro Capitão Gancho (Garrett Hedlund). Em sua primeira cena, ele já aparece afiando uma picareta com um gancho e, em vários momentos da trama, sua mão é o centro da imagem, sempre com o som de um “tic tac” ao fundo.

Todas essas coisas são até bem interessantes e poderiam ajudar a redimir o filme. Mas, no momento final, quando um personagem aparece de surpresa para salvar o dia sem que a trama tenha nos dado nenhuma informação sobre como ele conseguiu chegar ali, a magia se acaba. Vemos, finalmente, o dedo falso na mão do mágico e todos os outros problemas do filme explodem em nossa cara. Não ajuda muito o fato de que a batalha final seja meio sem graça, coroada com um desfecho vazio e leviano para Barba Negra.

Com sorte, Jarmush tem alguma ideia envolvendo a Bela Adormecida.

Publicado originalmente no Portal POP.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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