O espectro moral de “Sicario: Terra de Ninguém”

O espectro moral de “Sicario: Terra de Ninguém”

Com “Sicario: Terra de Ninguém”, Denis Villeneuve entra para o seleto time de diretores autorais. Quando analisamos e comparamos suas obras, observamos a presença de uma temática persistente. Neste seu quarto filme, já começa a ficar claro quais são os temas que lhe interessam, que o motivam. Ou, em seu caso específico, os temas que tem trabalhado até aqui, de forma alternada. Em “Incêndios” e “Homem Duplicado”, a discussão era sobre a identidade, como ela se forma e como se mantém depois de um trauma. Já em “Os Suspeitos” e “Sicario”, a questão moral preenche a tela.

“Os Suspeitos” faz alegoria à forma como os Estados Unidos tratam questões internacionais, buscando a truculência como forma de resolver problemas, como o uso da tortura para a coleta de informações. Os fins deveriam justificar os meios, mas, se é o caso, por que os personagens se sentem tão culpados pelo seus atos? “Sicario”, assim como “Homem Duplicado”, em relação a “Incêndios”, leva a discussão adiante jogando a metáfora fora. É um filme radicalmente literal. Fala diretamente dos EUA e suas instituições, demonstrando como o modus operandi da guerra ao terror praticado na última década e meia se espalhou para o combate às drogas.

Se os personagens de “Os Suspeitos” questionam o tempo todo a validade de seus atos, o que “Sicario” nos apresenta é um mar de cinismo, personificado pelo misterioso agente Matt Graver (Josh Brolin), que divide seu tempo entre a obtusa missão e fazer Kate Macer (Emily Blunt) se corromper, sempre com a justificativa de que essa é a única forma de desestabilizar os cartéis do tráfico. Ela se envolve em uma enorme operação antidrogas: depois de uma investigação de sequestro, seu destacamento de origem lhe coloca no meio de uma ação de uma dos grandes cartéis mexicanos. É a partir de seu olhar que a trama se desenvolve, com seu idealismo servindo de contraponto ao pragmatismo cínico de Graver.

Na medida em que a investigação avança, as ações testemunhadas por Kate vão se tornando mais controversas, para dizer o mínimo. E quanto mais ela se compromete menos sente que há uma escapatória. Ela não é inocente, mas sabe que usar as mesmas táticas de medo e terror faz com que a batalha seja perdida por princípio. Para Graver e Alejandro (Benicio del Toro), o misterioso agente latino com uma agenda própria, a agente é uma simples ferramenta.

Fora toda a discussão do espectro moral, “Sicario” será lembrado, pelo menos em médio prazo, pelo protagonismo de Blunt. É raro um papel feminino tão bem escrito e interpretado em uma trama tão marcantemente masculina. Ao mesmo tempo, o texto de Taylor Sheridan respeita as diferenças físicas entre homens e mulheres, evitando transformá-la em uma super-heroína (“Salt” talvez seja a melhor referência por contraste). O resultado visual é uma incrível e dramática sequência de luta entre ela e outro personagem (revelar sua identidade implicaria em um pequeno spoiler).

Villeneuve é o tipo de diretor cujo estilo só aparece quando nos esforçamos para entender as relações de sentido que ele busca criar em cada enquadramento ou movimento de câmera. No espectro dos diretores contemporâneos, ele está muito mais para David Fincher (“Garota Exemplar”), com sua câmera estoica, do que para Wes Anderson (“O Grande Hotel Budapeste”) e seu maneirismo afetado, que invariavelmente chama atenção para sua própria assinatura estilística.

A câmera em “Sicario” serve para nos guiar pela percepção de Kate Macer. Quando não é sua expressão que está enquadrada, dando-nos a dimensão exata do estado psicológico da personagem graças ao belo trabalho de Blunt, estamos acompanhando o que chamou sua atenção. Exemplo mais óbvio no filme é quando a borracha colorida que segura o maço de dinheiro do tráfico confiscado no banco em uma ação de apreensão vai lhe dizer tudo o que precisa saber sobre o caráter de um personagem secundário. Ou ainda, quando a cabeça da agente divide o quadro, colocando seus chefes à esquerda e Graver à direita, dando-nos uma ideia de que ela terá que tomar uma decisão em breve.

É um tipo delicado de subjetividade, que surge pelo mero manejo do quadro, evitando que os atores precisem ficar dizendo o tempo todo o que estão sentindo ou pensando. A história é contada através das imagens, algo curiosamente raro no cinema, mas fundamental para que o filme consiga explorar as áreas cinzentas do espectro moral, seu objetivo maior.

Publicado originalmente no Portal POP.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

1 ComentárioDeixe um comentário

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